LEIA AGORA, ERICO VERÍSSIMO, SUA OBRA COMPLETA, O SOLO DE CLARINETA

ÉRICO VERÍSSIMO

SOLO DE CLARINETA
memórias
2.° Volume





ÉRICO VERÍSSIMO
"Desde criança fui possuído pelo demônio das viagens. Essa encantada curiosidade de conhecer alheias terras e povos visitou-me repetidamente a mocidade e a idade madura. Mesmo agora, quando já diviso a brumosa porta dos setenta, um convite à viagem tem ainda o poder de incendiar-me a fantasia." E por isso, a segunda parte das memórias de Érico Veríssimo teria sido dedicada quase inteiramente á narração de suas visitas a outros países, não tivesse o viajante atingido tão bruscamente seu ponto de chegada. Confessando sua paixão pelo viajar, só igualada pela música (se esquecermos que escrever era a primeira entre todas), dizia que esses períodos de sua vida mereciam o espaço que viessem a tomar neste volume, se bem que alguns talvez preferissem uma investida menor no espaço externo e maior no interno. Dessa forma, foi na árdua reconstrução de suas recordações de lugares e pessoas que concentrou durante longos meses (1974 e 1975) a atenção, levado por aquela insofreável lealdade para com o leitor que o impelia a pintar um retrato não só vivido, mas preciso, informativo e muito pessoal dos homens e das coisas que o haviam impressionado pelo mundo a fora.
À terceira parte de suas memórias pretendia deixar suas opiniões sobre os colegas de ofício, no país e no exterior, sobre pensadores, artistas e cientistas que conhecera e respeitara e, principalmente, o depoimento sobre a arte da ficção, a dura disciplina, as leituras incessantemente procuradas e renovadas, o domínio das técnicas, enfim, a chamada "luta pela expressão".
A morte, porém, viria a frustrar esses planos, como bem o demonstra o volume que aqui apresentamos. O capítulo "Mundo Velho sem Porteira" ficou interrompido ao fim da visita a Portugal, faltando todas as outras regiões constantes no roteiro que aparece nessa edição em reprodução fac-similada. Apenas alguns excertos sobre a Espanha e o capítulo que dera como pronto, sobre a Holanda, foram encontrados em redação mais ou menos definitiva, tendo sido aproveitados, após um escrupuloso trabalho de editoração do Prof. Flávio Loureiro Chaves, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Os inúmeros manuscritos encontrados no gabinete do escritor estavam em esboço, de modo que ficou-nos, da terceira parte, somente o capítulo final, "O Escritor e o Espelho", uma espécie de retrospecto de sua vida de homem e intelectual, que Érico ainda desejava modificar. Também esse manuscrito foi incluído aqui, pois é talvez a versão mais aproximada do testemunho que o grande escritor gaúcho teria deixado sobre si mesmo.
Eis, pois, o segundo e, infelizmente, o último volume das memórias de Érico Veríssimo, que é publicado graças à colaboração inapreciável do Prof. Loureiro Chaves, de Mafalda e Luís Fernando Veríssimo e de Maurício Rosenblatt, a quem muito agradecemos.

PRIMEIRA PARTE



CAPITULO I

O ARQUIPÉLAGO DAS TORMENTAS


1

Voltamos para Porto Alegre em setembro de 1956. Três meses mais tarde o noivo de Clarissa chegou para o casamento. Era a primeira vez que visitava um país estrangeiro. Não sabia uma palavra de português.
Tivemos uma pequena dificuldade a resolver (os mitos! os ritos!) com a ajuda do pároco da igreja de N. S.a do Rosário. Como meu futuro genro fosse de origem judaica, a Igreja não permitia que a cerimônia religiosa se realizasse, como de costume, à frente do altar-mor. Assim Clarissa e Dave casaram-se na sacristia, às onze horas duma clara e morna manhã de dezembro.
À uma da tarde Mafalda forrou-se de belergal e até hoje me assegura que não se lembra muito claramente do que aconteceu naquele dia. Quanto a mim, recorri a um expediente não bioquímico: disfarcei-me psicologicamente de fotógrafo e andei dum lado para outro, subindo em cadeiras e mesas, de câmara e flash em punho, tirando fotografias em cores dos recém-casados e dos convidados à boda.
Quem pronunciou a frase áurea do dia foi minha mãe. Ao apertar a mão do noivo, D. Bega, que não sabia patavina de inglês, encarou-o e, à sua melhor maneira gaúcha, murmurou: "Então este é o filho da puta que vai roubar a minha neta?".
Dois dias depois Clarissa e Dave tomaram um avião da VARIG, rumo do Rio, onde deviam embarcar para Nova Iorque num dos navios da Moore-McCormack. Mafalda recusou ir ao aeroporto. Levei o casal no meu carro. ("Sire, um tamboreiro inglês não sabe tocar retirada!")
De instante a instante eu olhava furtivamente para o mostrador de meu relógio, cuja pulseira de metal apertava um pulso que devia estar batendo mais depressa que de costume. Os amigos e amigas de Clarissa que tinham ido despedir-se dela, cercavam-na em alegre algazarra. Eu rna! ousava encarar meu filho, que estava a meu lado, taciturno como eu.
Chegou por fim a hora dos adeuses. Chamei Clarissa à parte e, com um ar patético de último ato de tragédia, sussurrei: "Vou fazer-te o meu último .pedido. Quando chegares a Washington compra uma gravata nova para o teu marido. Essa que ele está usando agora é pavorosa".
Ao deixar o aeroporto, de volta para casa, veio-me à mente a figura de Lord Tantamount, o biólogo amador do Contraponto de Huxley, que costumava cortar o rabo de salamandras para observar depois como se regeneravam os seus tecidos e elas recuperavam a parte mutilada de seus corpos.
Que tipo de salamandra psicológica seria eu? Quanto tempo levaria para me refazer da mutilação sentimental que acabava de sofrer?


2

Em fins de outubro de 1956 realizava-se no auditório da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre um ato público de protesto contra a brutal intervenção militar soviética na Hungria. Convidado a tomar parte nessa reunião, fiz o discurso que passo a transcrever na sua essência porque, dum modo geral, isto é, no que diz respeito a princípios básicos, seu conteúdo deixa clara minha posição política, que tanta gente até hoje parece não ter ainda compreendido:

Minha solidariedade ao povo húngaro, neste momento tão barbaramente agredido, e meu protesto contra a criminosa intervenção armada soviética não terá nenhum valor e nenhum sentido se eu antes não deixar bem claro meu pensamento em. face de certos acontecimentos políticos e sociais de nosso tempo.
Sei que vou ferir suscetibilidades, tocar em pontos nevrálgicos. Sinto muito. É inevitável. Esta é a hora de falar alto e claro, e afinal de contas aqui estamos para, entre outras coisas, proclamar o direito que cada membro da raça humana tem de dizer e escrever o que pensa.
Não quero que a minha presença nesta sala e as minhas palavras está noite sejam interpretadas como um voto que faço para que a Hungria volte ao tipo de Governo que tinha antes da Guerra. Quero deixar inequivocamente expressa a,minha repulsa ao aspecto feudalista, fascista e racista do antigo regime húngaro.
Quando em 1935 as tropas de Mussolini invadiram a Abissínia, firmei o manifesto em que intelectuais brasileiros protestavam contra a bárbara agressão fascista. Protestei também, não uma mas mil vezes,, quando em 1937 o Generalíssimo Francisco Franco aceitou o auxílio de tropas da Alemanha e da Itália, que massacraram parte do povo espanhol, usando-o como cobaia para experiências com as armas modernas que aqueles dois países, então totalitários, haveriam de usar na guerra que em breve viriam a provocar. O pacto russo-alemão que em 1939 permitiu a invasão e a mutilação da Polônia, abrindo aos nazistas o caminho para a conquista da Europa, teve também o meu repúdio, que foi manifestado repetidamente em público. Incontáveis vezes lancei meu protesto apaixonado contra as perseguições e atrocidades de que tem sido vítima o povo judeu em tantas partes do mundo. As violências praticadas pela Inglaterra contra os patriotas de Chipre e as da França contra os nacionalistas da Algéria têm a minha mais decidida antipatia.
Para que ponto cardeal do comportamento humano convergem esses sentimentos e manifestações? Em que partido político me enquadram? É muito simples a resposta. Eles indicam que o escritor que agora vos fala coloca acima de conveniências político-partidárias, acima de doutrinas filosóficas, econômicas ou sociais, a causa da dignidade do homem, de seu direito a uma vida decente, produtiva e bela, de seu privilégio de escolher livremente a própria religião e os próprios governantes, e manifestar-se publicamente, sem qualquer tipo de pressão física ou psicológica.
E é em nome dessa causa e desses direitos que venho hoje trazer a minha solidariedade de homem e de escritor ao povo húngaro, que está sendo vítima de uma das mais brutais e revoltantes agressões da História dos tempos modernos. Ficar calado ou indiferente diante de tal intervenção armada é o mesmo que consentir tacitamente na volta da humanidade à barbárie, ao horrendo império do direito da força. Se nesta hora elevarmos os motivos partidários, ideológicos ou de "realismo político" acima dos sentimentos de fraternidade humana, teremos, no mais imbecil dos suicídios coletivos, assinado a nossa própria sentença de morte tanto civil como biológica.
Ê preciso alertar a consciência do mundo e exigir-lhe ao menos alguma coerência. Não me parece lógico condenar a Esquerda pelos mesmos crimes que toleramos ou mesmo aplaudimos quando cometidos pela Direita. Sempre repeli com horror aqueles que, sob o pretexto de nos salvarem a alma, querem queimar-nos os corpos. Não aprovo a idéia totalitária de que os fins justificam os meios. Odeio todos os tipos de ditadura, inclusive os chamados benignos ou paternalistas. Detesto qualquer forma de coação. A causa daqueles que lutam pela liberdade será sempre a minha causa. Não aceito como são e válido nenhum regime político e econômico que não tenha como base o respeito à pessoa humana.
Nos sistemas totalitários esse desrespeito se exprime numa ditadura policial; na manutenção de campos de concentração; no sacrifício do indivíduo, que é um ente real, em benefício da coletividade, que é uma mera abstração; nos expurgos físicos e na ausência dos mais elementares direitos civis.
Mas é preciso não esquecer que no nosso mundo capitalista também não se respeita a pessoa humana, pois aceitamos um regime de privilégios, monopólios e injustiças sociais crônicas, o qual permite que milhões de pessoas vivam miseravelmente alienadas, num plano mais animal do que humano.


Dias depois desse comício, Maurício Rosenblatt manifestou-me em particular sua opinião sobre o meu discurso. Como eu, abomina a violência e os regimes totalitários, mas olhando os acontecimentos com um olho frio, concluía que Nikita Kruschev nada mais fizera que seguir o realismo político stalinista. Se perdesse a Hungria para o Ocidente, a Rússia soviética teria uma cunha inimiga permanente e perigosamente cravada no seu flanco. "Não te iludas" — concluiu o meu clarividente amigo — "em situação idêntica o Governo americano teria agido da mesma maneira que o soviético". Repeli esta hipótese como absurda, porém menos de dez anos mais tarde eu viria a lançar o meu protesto público contra a intervenção militar dos Estados Unidos no Vietname e na República Dominicana.


3

Decidimos passar janeiro e fevereiro de 1957 na cidade. ("Chega de viagens" — dissera-me minha mãe, acrescentando: "Agora sosseguem o pito".)
Examinei as muitas notas que tinha com sugestões para O Arquipélago. Comecei a fazer-me perguntas... Uma delas me deixou desconcertado. Não teria, eu aceito o convite de João Neves da Fontoura levado pelo desejo inconsciente de encontrar um "pretexto honroso" para não ter de enfrentar a tarefa de escrever o último volume da trilogia, que sabia complexo e difícil? Sim, porque todas as minhas inibições, preguiças,, temores ficariam perfeitamente coonestados: o senhor diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana seria um homem muito ocupado com assuntos interamericanos e portanto não teria tempo cronológico nem psicológico para escrever romances...
E agora que desculpa podia apresentar eu a mim mesmo? Nenhuma! Precisava começar a trabalhar imediatamente. Havia comprado em Washington uma máquina de escrever portátil dum vermelho da China (sem a menor alusão política, creiam-me) e a bela mancha de tão viva cor estava agora sobre a mesa, diante de mim. Fiquei mais uma vez a olhar para uma folha de papel em branco. Afastei a máquina e, segundo um velho hábito ou mania, entrei a fazer desenhos com lápis de massa de várias cores, a atenção longe daquele tempo e daquele espaço. Um impulso do "computador" guiou-me a mão. Desenhei um chapéu de copa alta e cônica, com largas abas. E outro chapéu... E mais outro e outro. Sob os sombreros, caras indiáticas cor de terra de Siena queimada. As figuras do primeiro plano tinham as faces voltadas para mim, mas as outras estavam de costas e afastavam-se numa perspectiva que terminava numa porta... Já então eu conscientemente havia decidido que aqueles homens — estava claro que eram mexicanos! — entravam numa igreja. Desenhei sumariamente a fachada plateresca do templo, encimada por uma cúpula coberta de mosaicos amarelos e azuis. Era domingo e repicavam os sinos. México! Veio-me urna súbita saudade das imagens, da luz e da música desse país esplendorosamente plástico. Senti então uma vontade irresistível de escrever minhas impressões de viagem à pátria de Orozco, Rivera, Siqueiros e Juan Rulfo.
Mas afinal de contas, que podia eu saber do México? Passara na sua capital uma única noite, em 1941, entre um avião e outro, rumo da América Central. Minha segunda viagem ao México não durara mais de uma semana. A terceira, em 1955, prolongara-se durante quase um mês e me levara a diversas regiões do país. Fosse como fosse, eu me sentia de maneira misteriosa identificado com aquela terra e seu povo. Bom, identificado talvez não fosse a palavra exata. C melhor seria dizer que eu não conhecia o México, mas amava-o. Não era a mesma coisa? Claro que era! O amor, corno a arte, é uma das mais legítimas formas de conhecimento. A gente e as coisas mexicanas fascinavam em mim o romancista, o pintor irrealizado e possivelmente o remoto índio que dormita agachado em algum abscôndito recanto de meu ser.
Passei todo aquele verão e parte do outono que se seguiu absorvido a escrever sobre o México, com um enorme gosto e ímpeto. De certo modo a luz e o calor desse país mágico e trágico tiveram o dom de acelerar o processo de descongela-mento da cidade de Santa Fé e das personagens de O Arquipélago.


4

Foi em abril do ano seguinte que pela primeira vez meu coração deu um forte sinal de alarma. No momento em que comecei a fazer, de improviso, o discurso inaugurai dum congresso, em Porto Alegre, num auditório repleto de gente, à luz de holofotes e diante de fotógrafos e de cinegrafistas de televisão, meu coração disparou e ficou a bater com assustada fúria, ao mesmo tempo que eu sentia um aperto na garganta, uma opressão no peito, um estonteamento... Fiz um enorme esforço para controlar a voz e os pensamentos, evitando que minha sintaxe seguisse o desordenado ritmo cardíaco.
Creio que ninguém percebeu o que se passava comigo.
Havia muito meu primo, o Dr. Franklin Veríssimo, excelente cardiologista, insistira para que eu começasse um sério tratamento cardíaco preventivo — conselho este que não segui. Levou-me ele a seu consultório várias vezes, para exames gerais. Receitou-me medicamentos que não tomei. Recomendou-me um tipo de vida que não levei. Por quê? Talvez porque, seguindo um pensamento mágico mas estúpido, eu achava que nada de grave me poderia acontecer...
Entra em cena agora uma personagem por mais dum título importante na minha vida. Havia algum tempo que eu conhecia, de longe, o Dr. Eduardo Faraco, de quem Moysés Vellinho mais de uma vez me falara com grande admiração intelectual e humana. Confesso que não me havia ainda detido no exame da personalidade desse médico. Nossos caminhos raramente se cruzavam. A imagem que eu guardava dele no complicado arquivo da memória era a dum homem muito bem apessoado, de ares um tanto agressivos — garboso gladiador permanentemente no centro da arena, à espera do próximo retiário. Algo em seu rosto — talvez o desenho da boca — dava-lhe uma quase permanente expressão de desdém.
Só em 1955 é que, em Washington, tive a oportunidade de conviver com Eduardo Faraco e conhecê-lo melhor. Para resumir numa frase simples um processo complexo, direi que nos tornamos amigos. Rasguei sua "ficha" antiga, substituindo-a
por urna nova, que se foi aos poucos enriquecendo de anotações mais acuradas. Lembro-me de que uma vez estávamos discutindo não me lembro exatamente que, quando em dado momento Faraco fez uma dessas perguntas retóricas que são, por assim dizer, trampolins numa conversação. "Sabes o que são as cores, não?" Interrompi-o: "As cores são doenças da luz". Ele me olhou, franziu a testa, e disse: "Deixa de literatura, índio!". Vencendo a minha tradicional preguiça, dei um salto mortal que me levou meio às cegas de volta a uma certa página dum texto ginasial de Física.
É curioso como nesse clínico e professor de Medicina a capacidade de raciocinar com fria objetividade científica pode coexistir — nem sempre pacificamente, é verdade — com seu temperamento inflamável de meridional. (Tem nas veias sangue italiano, tanto pelo lado paterno como pelo materno.)
Pois foi esse "calabrês do Alegrete", que me chamava de "índio da Cruz Alta" que, em fins daquele 1957, me alertou para os perigos dum distúrbio cardiovascular repetindo, de modo mais dramático, as recomendações do Dr. Franklin.
Até havia seis anos passados eu jogara regularmente tênis, mal mas com prazer. Disputava vários sets, sem interrupção, correndo muito, sem que meu coração jamais protestasse. Agora, porém, sempre que subia uma escada ou uma ladeira, ficava ofegante, sentia uma opressão no peito, uma espécie de ardência na garganta... Decidi levar a sério o tratamento sugerido com tanta veemência por dois grandes médicos. Dentro de poucos meses, porém, relaxei-o, passando a me interessar mais pelo coração duma certa personagem do que pelo meu próprio. É que, finalmente, tinha começado a escrever O Arquipélago. O Dr. Rodrigo Cambará sofrerá já dois enfartes e exigia toda a minha atenção e cuidado.
Em janeiro de 1958 Mafalda e eu fomos para a Praia de Torres, onde nos instalamos numa vivenda que os Dantas, um casal de amigos, nos emprestaram pela metade da temporada de verão. Quando chegamos, chovia torrencialmente. Nossa casa ficou ilhada em meio de charcos e pequenas lagoas. A chuva continuou quase ininterruptamente durante três ou quatro dias. Assim, foi contra um fundo musical feito por um cora! de sapos que escrevi as páginas iniciais do último volume da trilogia. Meti-me no corpo do Dr. Rodrigo Cambará no momento em que ele sofreu um edema pulmonar agudo.
A chuva finalmente parou. Surgiu o sol. Entrei na minha rotina de veranista. Acordava às oito da manhã, às nove estava batendo na máquina de escrever, às onze ia para a praia, fazia a minha caminhada pela beira do mar, até à foz do rio Mampituba e depois me deitava na areia e ficava conversando com amigos. Após o almoço, entregava-me a uma rápida sesta, da qual despertava estonteado, com um desejo danado de continuar a dormir. Mas reagia, vencia a sonolência, sentava-me junto à máquina de escrever, relia o que havia escrito pela manhã e de súbito, magicamente, entrava na dimensão do romance, e eu já não era mais eu, mas sim, alternadamente, Rodrigo, Floriano, Toríbio, Maria Valéria, Flora, Tio Bicho... Tinha às vezes a impressão de que meu organismo produzia, sem o auxílio de qualquer droga, uma espécie de dexedrina que me excitava, aguçando-me o espírito e fazendo-me trabalhar horas e horas com tão apaixonada intensidade que se me tornava difícil, quase doloroso, parar. Era, pois, com certa tristeza que eu via o sol sumir-se por trás dos montes, pois a qualidade da luz elétrica de que dispúnhamos não me permitia escrever à noite.
Fiz um dia, à margem duma das folhas dos originais de O Arquipélago, esta anotação a lápis:

16 de janeiro de 1958. Cinco da tarde. Recebo a visita inesperada de I.J., pessoa que admiro e estimo. Contrariado, paro de escrever mas não consigo sair de dentro do romance. I. conversa animadamente durante uns quarenta minutos. Ê como se ele estivesse falando aramaico. Não entendo nada do que diz, porque não estou nesta sala nem nesta hora.




5

Um anoitecer, estávamos Mafalda e eu sossegadamente no alpendre da casa, olhando as fantásticas abstrações que o sol pintava no horizonte crepuscular, por trás do perfil da serra, quando uma senhora desconhecida irrompeu em nosso jardim aos gritos e me suplicou fosse socorrer um vizinho que tinha caído de repente sem sentidos. Entrei no meu carro e dirigi-me para o lugar do acidente. Encontrei uma mulher ainda jovem a gritar desesperadamente, enquanto tentava erguer o busto dum homem que jazia estendido no chão, completamente desacordado. "Socorro!" — exclamou ela ao ver-me. — "Acudam o meu marido!" Este aparentava trinta anos, era mais ou menos da minha altura, mas muito mais corpulento. Segurei-o por baixo dos braços, arrastei-o para junto do carro, sentei-me no banco da frente e, auxiliado pela mulher, que lhe ergueu as pernas, consegui com grande esforço içá-lo para dentro. Nesse momento meu coração já batia mais acelerado. Que fazer? A cabeça do homem caiu pesada sobre o meu ombro. Sua perna fria tocou a minha. A mulher, sentada a seu lado, abraçava-o, chorando, e me contava confusamente o que havia acontecido. O marido estava ensinando uma das filhinhas a andar de bicicleta, quando de repente, sem soltar um ai, caíra no chão como que fulminado.
Toquei para uma farmácia, na esperança de lá encontrar um médico, o que não aconteceu. Tomei o pulso do desconhecido e não o senti bater. Seus olhos estavam cerrados, a boca entreaberta, o peito imóvel sem o menor sinal de respiração. Precipitei o carro a toda a velocidade rumo do hospital, em cuja frente encontramos duas irmãs de caridade, gordas e plácidas, sentadas em cadeiras, na calçada, na quietude do anoitecer. Corri para elas e contei-lhes rapidamente o que se passava. Disseram-me que àquela hora não havia nenhum médico no hospital. E um enfermeiro que me pudesse ajudar a carregar para dentro o paciente? — indaguei. Também não havia nenhum no momento. A mais velha das irmãs me disse que ia chamar um doutor que morava nas vizinhanças, e lá se foi, caminhando tão depressa quanto lhe permitiam a corpulência e a idade. A outra irmã trouxe de dentro do edifício uma mesa com rodas. De novo segurei o homem, fazendo passar os meus braços por baixo dos seus, e trançando as minhas mãos sobre o seu peito. Com o auxílio das mulheres, consegui colocá-lo em cima da mesa e levá-lo até uma das salas do hospital.
Minutos depois chegou o médico e, com uma lentidão exasperante, pôs-se a examinar aquele corpo inerte. Auscultou-Ihe o peito, examinou-lhe as pupilas e por fim aproximou-lhe da boca um espelho de bolso. Ergueu os olhos para mim e murmurou: "A coisa está preta". Meteu o estetoscópio na bolsa e retirou-se.
Algum tempo depois apareceu-nos por puro acaso outro médico, um veranista que eu conhecia pessoalmente. Contei-lhe o que havia acontecido. Ele chamou uma das irmãs, pediu-lhe que preparasse uma seringa com agulha e aplicou uma injeção de adrenalina diretamente no coração do paciente, mas sem nenhum resultado. "Não há mais nada a fazer" — disse-me. "O homem está morto." Pedi-lhe que fosse dar a notícia à viúva que, desfeita em pranto, se encontrava na sala contígua, onde uma das irmãs tratava de confortá-la.
Fiquei a olhar para o defunto, cujo nome até hoje não fiquei sabendo. Vestia apenas um calção de praia. Nunca mais pude esquecer a expressão daqueles pés brancos, e senti com o olhar que já estavam frios.
Caminhando sozinho aquela noite pela praia deserta, fiz algumas reflexões sobre a morte. Desde que completara cinqüenta anos eu começara a pensar com mais freqüência — mas não obsessivamente — na possibilidade de cessar de ser, dum segundo para outro.
Havia menos de duas horas carregara nos braços um cadáver. Aqueles pés brancos e frios pareciam conter uma terrível advertência.
Parei diante do mar. As ondas rolavam para a praia, soltando um gemido que parecia vir ameaçador das profundezas, mas que acabava desfeito em suspiros de espumas sobre as areias. No céu sem lua as estrelas cintilavam. O vento do largo me batia, morno, na cara.
Seguindo um hábito que me vem da infância, comecei a conversar comigo mesmo em voz alta. Vieram-me à mente trechos dum livro do teólogo existencialista Paul Tillich, que eu acabara de ler. Meu intelecto então começou a doutrinar o corpo.
"É necessário que te convenças de que o não-ser é parte de nosso próprio ser. O não-ser depende do ser que ele nega. Deste modo, meu amigo, o ser tem uma prioridade ontológica sobre o não-ser. Não poderia haver negação se não houvesse uma afirmação precedente a ser negada."
Meu coração escutava, sem comprometer-se. No alto de um dos três rochedos de basalto, ao longo da praia, o pequeno farol cumpria o seu dever, mandando de instante a instante uma mensagem luminosa aos navegantes da noite.
Repeti uma frase de Tillich: O ser é a negação da noite primordial do nada. E meu corpo quis saber como era essa noite. Expliquei que se trata de algo impossível de verbalizar.
Continuei a caminhar pela beira do mar, pisando em conchas, algas e medusas. "Mas quem ganha a batalha final é o nada" — queixou-se o meu corpo. Sacudi a cabeça negativamente. "Há um limite para essa vitória. Se sentimos o não-ser como um vencedor, o ato de sentir pressupõe o ser!"
Mas era melhor pensar em coisas positivas. Dentro de menos de dois meses Mafalda e eu ganharíamos nosso primeiro neto. Essa idéia me encheu o peito duma doce alegria, espantando de minha cabeça os pensamentos de morte.
Um caranguejo da areia, renda clara e móvel na praia morena, passou na minha frente, rumo dos cômoros. Encaminhei-me para o automóvel, sentei-me atrás do volante e pus o motor em movimento. Meus pés sentiram um corpo estranho perto do acelerador. Acendi a luz para ver do que se tratava. Eram as chinelas do defunto.


6

Quando voltei para Porto Alegre, em meados de março, as paineiras estavam já floridas, a luz amadurecia e as folhas dos plátanos começavam a amarelecer e cair. Uma noite, para celebrar a entrada de outono, ouvimos em casa o quinteto para clarineta e cordas, de Brahms.
No dia 30 daquele mesmo mês, estava eu numa das salas da Editora Globo a conversar com meu amigo Mario Lima, quando Mafalda me telefonou e, comovida, leu o cabograma em que nosso genro nos comunicava o nascimento de Michael, ocorrido no dia anterior. Se eu fosse um sujeito puro, naquele momento teria exclamado: "Ganhei um neto! Abracem-me! Sou avô! Não me podia ter acontecido nada de melhor!". E sairia a distribuir abraços e beijos entre as pessoas que encontrasse. Mas qual! O velho pudor de revelar emoções me tolheu. Lá estava Mr. Stanley, em pleno coração da África, a apertar a mão do outro cavalheiro: "É o Dr. Livingstone, presumo...".
Transmiti a notícia ao amigo de maneira quase impessoal. Ele me abraçou. Eu sentia o neto na garganta, no peito, nas entranhas, em todo o corpo. Dirigi-me para o meu automóvel — aéreo, feliz, meio trêmulo, os olhos úmidos —, acionei o motor e toquei para casa, sentindo-me mais rico e ao mesmo tempo mais vulnerável que nunca.
Continuei a trabalhar no terceiro volume da trilogia. Em certos dias, ao cabo de sete horas maciças de trabalho, sentia uma canseira cerebral tão grande que ficava incapacitado para qualquer convívio social. Não raro a fadiga transformava-se em irritação e, olhando através desse estado de espírito o trabalho até então realizado, minha tendência era a de achá-lo péssimo. Bastavam-me, entretanto, umas seis ou sete horas de sono para recuperar o entusiasmo perdido na véspera. E de novo lá estava a bater, ora na velha máquina preta, ora na nova vermelha, enchendo páginas e páginas de palavras. Tinha já terminado as duas primeiras partes do livro, O Deputado e Lenço Encarnado.
Entrou o inverno e continuei a trabalhar. Dúvidas me assaltavam com freqüência. Achava que o livro me estava saindo longo demais. Ao escrever O Continente, o que a princípio me parecera um obstáculo, isto é, a falta de documentos e de um maior conhecimento dos primeiros anos da vida do Rio Grande do Sul, tinha na realidade sido uma vantagem. Era como se eu estivesse dentro dum avião que voava a grande altura: podia ter uma visão de conjunto, discernia os contornos do Continente. Viajava num país sem mapas, e outra bússola não possuía além de minha intuição de romancista. E isso fora bom. Ao escrever O Retrato já o "avião" voava tão baixo que comecei a perder de vista a floresta para prestar mais atenção às árvores. E estas oram tão numerosas, que se me tornou difícil distinguir as importantes das supérfluas. E agora, no processo de escrever o terceiro volume, o "aparelho" voava a pouquíssimos metros do solo. Mais que isso. Tinha aterrado e eu havia já desembarcado, pisava o próprio chão do romance, estava no meio da floresta, de mapa e bússola em punho, mas meio perdido, porque eu também era uma árvore.
Findou o inverno. Apagaram-se nossas lareiras. Floresceram o pessegueiro e a pereira de nosso pátio. E um dia resolvemos visitar a "metade norte-americana" de nossa tribo. E O Arquipélago? Podia terminá-lo nos Estados Unidos à sombra do neto em flor. Ficou decidido, porém, que antes disso faríamos a nossa por tantos anos protelada viagem à Europa. Ficou combinado que levaríamos conosco Luís Fernando.
Em meados de fevereiro de 1959 embarcamos para Portugal, num navio italiano. As dramatis personae de O Arquipélago foram mais uma vez postas em câmara frigorífica, mas eu levava a bordo comigo uma personagem viva que me interessava e intrigava de maneira particular: meu filho. Era ensimesmado, retraído e silencioso como eu fora na idade dele. Eu queria saber o que ele pensava de mim. Mais importante ainda: o que sentia por mim. Sua aceitação, seu amor eram-me tão necessários como o pão e o ar. Eu compreendia — e como! — que o fato de ser filho de um escritor conhecido constituía para ele uma espécie de rótulo incômodo que teria de carregar colado à pele vida em fora. Lembrei-me de que, havia algum tempo, tendo ele apenas doze anos, um dia em Torres fora convidado para jogar uma partida de tênis-de-praia com um médico de minhas relações, que mais tarde me relatou a estória. Como não conhecesse seu oponente — enquanto a bola ia e vinha — o Dr. P.P. submeteu-o a um breve interrogatório, naturalmente em voz muito alta. "Menino, como é o teu nome?" A resposta tardou alguns segundos. "Luís Fernando."
— "Luís Fernando de quê?" Nova pausa. "Veríssimo." — "Parente do Érico?" Outro hiato. "Sou." — "Mas que é que você é dele?" Nova hesitação. "Filho." Este diálogo pareceu-me revelador de toda uma situação psicológica.
Para mim uma das partes mais importantes de O Arquipélago seria o momento em que Floriano, depois dum grande esforço sobre si mesmo, consegue entabular com Rodrigo, seu pai, o diálogo que eu gostaria de ter tido com o meu próprio pai: um "ajuste de contas" no plano sentimental, numa completa libertação de todas as mitologias, de todos os códigos escritos ou não, um encontro no plano humano da mútua aceitação e do amor.
Às vezes, quando Luís Fernando estava a contemplar o mar, durante aquela viagem, eu ficava a observá-lo com olho de romancista, tentando, em vão, esquecer minha condição suspeita de pai, e procurando meter-me no corpo, no espírito daquele rapaz introvertido e descobrir que tipo de problema teria ele com relação a mim. O mesmo ressentimento que eu tivera, quando adolescente, com respeito ao velho Sebastião, embora por outros motivos? Estaria eu por omissão ou comissão alienando-o sentimentalmente de mim? Que devia fazer ou deixar de fazer para ajudá-lo?
Tentava estabelecer com ele diálogos em profundidade, mas meu filho defendia sua cidadela interior com a obstinação com que eu sempre defendera a minha.
O que foi essa nossa primeira visita à Europa e as outras quatro que se seguiram, será assunto dum capítulo à parte.


7

Existem no homem sentimentos naturais e respeitáveis que, no entanto, quando transpostos para a dimensão da literatura, correm o risco de parecer piegas e até grotescos. Tenho uma certa má vontade para com qualquer obra de ficção — em livro, teatro ou cinema — que explore o tema do amor materno (ou paterno), o dos "órfãos da tempestade" ou ainda o do cão fiel que se fina de tristeza quando a morte lhe rouba o dono. Tenho procurado descobrir honestamente a fonte dessa aversão e cheguei à conclusão de que ela está, por mais ridículo que pareça, no fato de meu superego ter escolhido para mim, como paradigma, a imagem do homem estóico e imperturbável, num contraste com o que realmente sou, isto é, um sujeito vulnerável, sensível, que se comove com facilidade não só ante os aspectos tristes ou trágicos da vida, mas também diante de qualquer expressão de beleza ou bondade. (O satirista que tenho dentro de mini não será, acaso, um agente secreto do superego?)
A verdade é que, quanto mais velho vou ficando, tanto maior é a minha admiração pelas pessoas que têm a coragem de externar seus sentimentos, suas paixões ou aversões sem nenhum respeito humano. Numa época como a nossa, o sentimentalismo passou a ser o oitavo pecado mortal. Daí à aceitação de torturas policiais, campos de concentração e extermínio, é só um passo. Um passo que um dos países supostamente mais civilizados do mundo já deu.
Seja como for, não vou narrar o que foi o nosso reencontro com Clarissa depois de dois anos e meio de separação. Pela primeira vez o romancista considera-se completamente desobrigado com relação aos sentimentos e às sensações de suas personagens. Quanto ao meu encontro com Mike, direi apenas que quando, de volta da viagem à Europa, entrei na casa dos Jaffe o sujeitinho estava acocorado no centro duma saleta, e quando me viu ergueu primeiro as sobrancelhas interrogativas, depois franziu o nariz, e o seu rosto se abriu todo num largo sorriso, como numa instantânea aceitação do recém-chegado ("Dr. Livingstone, I presume...") — e então eu me inclinei, ergui-o nos braços, apertei-o contra o peito e senti que estava abraçando e beijando não apenas o meu primeiro neto, mas também os meus dois filhos, meus pais, minha mulher e a mim mesmo.
Instalamo-nos num pequeno apartamento escassamente mobiliado, a curta distância da casa dos Jaffe, que nos emprestaram pratos, talheres, panelas, toalhas e roupa de cama. Dentro de poucas horas após nossa chegada, a bandeira brasileira já tremulava figuradamente naqueles poucos metros quadrados num edifício de Arlington, condado de Virgínia, à margem direita do rio Potomac, a tiro de bacamarte do distrito de Columbia.
Segundo um ditado gaúcho, o pai é peão do filho e cavalo do neto. Com Mike escanchado no meu pescoço, quase todos os dias eu saía a caminhar entre nosso apartamento e a casa dos Jaffe, em incontáveis viagens de ida e volta. O menino agarrava-se aos poucos cabelos que me restavam na cabeça e
me esporeava o peito com os calcanhares. Exigi que ele me pagasse por esses serviços aprendendo a chamar-me vovô. Pagou.
Naquele primeiro mês, Mafalda e eu revisitamos as galerias de arte de Washington, fomos a um que outro teatro ou cinema, projetamos numa tela os diapositivos das nossas fotografias turísticas e ruminamos com o auxílio deles os prazeres de nossa viagem.
Fiz todas essas coisas contra o fundo pressago duma preocupação. Lá estavam à minha espera na gaveta da escrivaninha os originais de O Arquipélago, que eu mandara buscar do Brasil, e que correspondiam a mais ou menos um terço do volume. Por alguns dias uma absurda inibição me impediu de reler ou mesmo tocar aquelas páginas. Quando o fiz, confesso que sua leitura não me decepcionou: ao contrário, achei que estavam bem e que ficariam ainda melhores depois da revisão final. Minha mesa de trabalho estava colocada junto duma janela através da qual eu podia divisar a ponta do Obelisco e a cúpula do Capitólio, no meio do casario e dos parques de Washington. O que eu não conseguia avistar era Santa Fé e as personagens de O Tempo e o Vento, e isso me preocupava. Era como se a parte do livro já escrita pertencesse a outro autor. Suas criaturas recusavam reconhecer-me e obedecer-me. De nada me serviam o roteiro, notas, mapas e desenhos que tinha sobre a mesa, à minha frente. Não conseguia escrever uma linha sequer... Era o feitiço de Washington, a sua maldita "magia branca". E eu me dizia: "Amanhã, quem sabe, amanhã...". E ia dormir pensando no livro.
Como não andasse me sentindo bem fisicamente — tonturas, peso na cabeça, zoada nos ouvidos — e mesmo porque achava que era tempo, de fazer um novo exame médico, procurei o Dr. K., um dos melhores cardiologistas de Washington. Minha pressão arterial estava alarmantemente alta. Contei ao doutor os meus problemas com relação ao livro e concluímos (uso o plural porque o médico confirmou o meu "diagnóstico") que se tratava duma crise hipertensiva de origem psicossomática. À instância minha, o Dr. K. me receitou uns comprimidos hipotensores, e eu voltei para casa intrigado com a atitude um tanto passiva e reticente do especialista.
Havia a poucos metros da porta de nosso apartamento um playground aonde pela manhã eu costumava levar meu neto. Muitas das senhoras das vizinhanças para lá levavam seus filhos, e pelos olhares que me lançavam eu compreendia a estranheza delas por me verem ali naquela pracinha durante horas — o único homem adulto no meio de tantas crianças e donas de casa. Um dia uma destas puxou conversa comigo e não resistiu à tentação de perguntar-me: "O senhor está aposentado?". Respondi que não e expliquei-lhe em meia dúzia de palavras a minha situação. Mas pensei cá comigo: "É a velhice, compadre". E fui balançar-me com Mike na gangorra.


8

Quando voltei um dia da minha caminhada matinal, Clarissa anunciou-nos que em princípios do ano próximo nos daria mais um neto. Mafalda olhou para Mike e murmurou: "Coitadinho, mal sabe ele que os dias de seu reinado estão contados".
Muitas vezes, estendido num sofá, depois de passar várias horas na vã tentativa de entrar em Santa Fé e no Sobrado, eu ficava a pensar outra vez no tempo que se arrastava e se perdia para sempre, e chegava a senti-lo de forma concreta, como um peso sobre o peito. Era nesses momentos opacos que me vinha a impressão de ter passado a vida inteira à sombra ameaçadora dum relógio, símbolo talvez da autoridade paterna, a qual no meu caso particular fora exercida por minha mãe. ("Acorda, vadio, está na hora de ir pra escola!" — "Pula dessa cama, são oito horas, se chegas tarde ao banco podes perder o emprego!") Meu superego fizera-se zelador do relógio, era o cronometrador implacável de minhas atividades. Marcava-me sempre tarefas dentro de prazos rígidos, incitava-me ao "cumprimento do dever". Desconfio que estava ainda ferrenhamente empenhado em provar a minha mãe que eu não era como o meu pai, o amável, leviano boêmio intemporal que nunca olhava para relógios nem pensava no vencimento das duplicatas da farmácia...
Continuei nas minhas visitas regulares ao meu doutor, que mensalmente me submetia a eletrocardiogramas e às auscultações de rotina. Ora, os médicos americanos em geral não conversam com o paciente sobre as doenças destes. Limitam-se a fazer as recomendações que acham necessárias, a rabiscar receitas... e good bye! Eu insistia com o Dr. K. para que ele dissesse alguma coisa sobre minha pressão arterial, e o homem, sempre reticente, murmurava: "Well, ainda está um pouco alta".
Os dias passavam. Os Jaffe, que se entendiam à maravilha, viviam felizes. Luís Fernando fazia um curso de desenho comercial na Corcoran Gallery; periodicamente metia algumas roupas numa maleta e ia passar dois ou três dias em Nova Iorque, onde ficava horas e horas nos lugares onde se podia ouvir jazz autêntico.
Mafalda tricoteava roupas para o novo neto. E eu, sem poder vencer a inibição que me impedia de escrever, dividia o tempo e a atenção entre um que outro livro alheio e as funções de escudeiro e cavalo de Mike. Quanto às personagens de O Arquipélago, períodos havia em que se sumiam por completo da minha consciência ou, para ser mais preciso, apareciam-me apenas vagamente, como espectros de espectros.
Nas minhas caminhadas solitárias à noite pelas ruas suburbanas e de ordinário desertas de Arlington, eu retomava os velhos diálogos interiores de que participavam sempre o pessimista e o otimista. A parte negativa e um tanto masoquista de meu ser quase se comprazia à idéia de que eu estava "liquidado". Mas a outra, a positiva, animava-me: "Isso passa, homem. Não é a primeira vez que acontece. Amanhã estarás rindo de todos estes problemas, alguns dos quais são mais inventados do que reais".
Era importante para a minha saúde saber a qual dessas vozes o meu coração dava ouvidos.
"Só posso escrever em Porto Alegre e na minha casa" — concluí um dia. E deixei o romancista hibernar.
Paul nasceu a 6 de fevereiro de 1960. Era louro e de olhos azuis. Poucos meses depois Mafalda, Luís Fernando e eu voltamos para o Brasil.


9

"E agora" — perguntou minha mãe — "vocês não pretendem sentar o rabo em casa?". Eu havia notado que seu entusiasmo pelos bisnetos era um tanto morno. É que ela sabia que os dois "gringuinhos" dali por diante seriam fatalmente motivo para novas viagens e longas ausências nossas. D. Ema, mãe da Mafalda — que resgatáramos da solidão depois da morte do marido, trazendo-a para nossa casa — olhava o problema de maneira mais filosófica. Minha sogra era uma simpática e rosada Grossmutter de olhos de lápis-lazúli, alemã de segunda geração, uma Frau de quem — parafraseando Garcia Lorca — se poderia dizer que tinha alma de café-com-leite e cuca. Como falasse português ainda com sotaque germânico, eu costumava dizer-lhe que ela confundia a pomba atômica com a bomba da paz.
Quando via minha mãe e minha sogra juntas, eu às vezes pensava em seus defuntos maridos, boêmios ambos, cada qual à sua maneira, e irmãos gêmeos em suas apaixonadas inclinações poligâmicas. E ali estavam agora sob o mesmo teto aquelas duas velhas admiráveis, diferentes no sangue, no físico, no temperamento e na maneira de encarar a vida, mas apesar de tudo irmãs, membros que eram dessa brava estirpe de virtuosas damas à qual haviam pertencido tantas das heroínas de O Tempo e o Vento.
Durante todo aquele ano de 1960 trabalhei com uma intensidade obsessiva em O Arquipélago, usando a máquina negra sempre que tinha de enfrentar um problema de composição, e a vermelha quando me sentia erguido e arrebatado por essa febril e exaltada onda, à qual, na falta da palavra precisa, chamamos inspiração. O sol do Rio Grande conseguira degelar per completo Santa Fé e seus habitantes, restituindo-os à vida. E eu voltara a freqüentar o Sobrado, como amigo íntimo e confidente dos Terra-Cambará.
À tardinha, terminada a tarefa do dia, costumava caminhar abaixo e acima, à frente da minha casa, discutindo comigo mesmo, quase sempre em voz mais ou menos alta, problemas e situações do livro, e ensaiando novos diálogos, em que procurava imitar a voz e às vezes até os gestos, os cacoetes e a maneira de caminhar de cada personagem. (Creio que alguns dos meus vizinhos alimentam até hoje sérias desconfianças quanto ao meu equilíbrio mental.)
Vinham-me de vez em quando grandes dúvidas a respeito da estrutura e do ritmo de O Arquipélago. Talvez eu tivesse dado no pão do tempo histórico do Rio Grande do Sul uma mordida maior que a minha capacidade de mastigar e digerir. Apesar de haver já escrito mais de mil páginas, percorrera apenas pouco mais da metade do tempo que a ação da história devia abranger (1922-1945) de acordo com o roteiro original. Começava também a perceber que esse último volume da trilogia assumia cada vez mais o caráter de crônica, o que constituía um perigo talvez mortal para a qualidade artística do romance. Que fazer?
Parado a uma esquina da Rua Felipe de Oliveira, a contemplar os fantásticos poentes da minha cidade, muita vez fiquei a resmungar para mim mesmo possíveis soluções para o problema, e acabava sempre concluindo que não devia, não podia alterar o roteiro da obra pela mesma razão por que um homem não pode mudar o seu passado, passar a limpo a sua vida. O que aconteceu, aconteceu... irreversivelmente.


10

Num domingo de março de 1961 tivemos à noite em casa vários amigos, entre os quais o Dr. Eduardo Faraco. Conversou-se até depois da meia-noite. Eu estava mais silencioso que de costume. Sentia-me abrumado por uma angústia que não saberia descrever então, como não sei agora. Apesar de estar atirado — este é o verbo exato — numa poltrona, respirava com dificuldade e sentia uma opressão no peito, uma ardência na garganta, como se estivesse a subir correndo uma ladeira. As vozes dos amigos me chegavam aos ouvidos como um rumor distante e indistinto. Até hoje não compreendo por que não chamei Faraco à parte para lhe contar o que sentia. Quando nos despedimos ele me encarou, franziu a testa e murmurou: "Que é que há contigo?". — "Nada" — respondi. O meu amigo insistiu: "Estás falando a verdade?". Hesitei por uma fração de segundo e menti: "Estou".
Antes de ir para a cama, aquela noite, tomei um tranqüilizante. Creio que não levei muito tempo para cair no sono. Lembro-me vagamente de que ao amanhecer tive um sonho: estava no fundo dum rio, tentando, aflito, subir à superfície para respirar... Despertei, estremunhado, dentro dum grande mal-estar em que continuava a sensação de afogamento, agora acompanhada de dores que me agulhavam o peito, irradiando-se para o ombro esquerdo, continuando no braço, adormentando-o, ao mesmo tempo que subia, numa espécie de reflexo, pelo pescoço. O coração havia disparado, e eu sentia as suas batidas surdas e arrítmicas. "Vai passar" — pensei — "não é
nada". Não quis acordar Mafalda. Mordi o lábio para não gemer alto. Aquilo não me podia acontecer... A dor continuava, forte mas ainda suportável. O pior era a falta de ar, que estava prestes a lançar-me no pânico. Num dado momento foi tão grande a minha angústia, que pulei da cama, saí do quarto e enveredei pelo corredor, mas não sem antes olhar para o relógio de cabeceira — o tempo! sempre o tempo! — e verificar que faltavam poucos minutos para as sete horas. Na sala de estar fiquei a andar dum lado para outro, trêmulo, sufocado... "Se entras em pânico tudo ficará pior... Isto vai passar...'' Mas eu precisava de ar, ar, ar! A dor eu podia agüentar. O horrível era a sensação de asfixia... Recostei-me no rebordo da lareira, ofegante, e fiquei a olhar estuporado para uma reprodução de Cézanne. Chamo a Mafalda, conto o que estou sentindo? Não. Ela vai assustar-se. Isto passa. E o coração parecia bater-me contra as costelas, mais alarmado ainda que o resto do corpo. E de novo rompi a andar, estonteado, com a mão no pescoço, um suor frio a escorrer-me da testa. Sentia-me abandonado, na enorme solidão daquela casa silenciosa e como que deserta. Ansiava por uma presença humana... precisava de socorro, mas estava tolhido pelo inexplicável pudor de parecer melodramático. Voltei para o quarto. Mafalda dormia tranqüila. Hesitei ainda por alguns segundos antes de despertá-la. Pronunciei seu nome baixinho, muitas vezes. Por fim ela abriu os olhos. Em vez de gritar-lhe que estava muito mal, disse-lhe apenas: "Não estou me sentindo bem". Minha mulher, porém, pelo aspecto cianótico de meu rosto, pela expressão de meus olhos, percebeu que algo de muito sério se estava passando comigo. Levantou-se e correu para o telefone.
Só então me lembrei do remédio de urgência que tinha sempre sobre a mesinha-de-cabeceira. Abri o vidro de trinitrina, tirei dele com dedos trêmulos dois comprimidos e coloquei-os debaixo da língua e, isto feito, atirei-me na cama e ali fiquei, arquejante, como um homem que se afoga aos poucos no fundo dum rio. Mafalda me fez tomar dois comprimidos de novalgina dissolvidos num pouco dágua. Sentou-se na cama e, enquanto me passava um lenço pela testa e pelas faces, tratava de me confortar. Agora eu lia medo nos olhos de minha companheira, e percebia que ela fazia o possível para que eu não percebesse nada. Sorri para tranqüilizá-la.
O Dr. Faraco não tardou a chegar, acompanhado de seu assistente, o Dr. Décio F. Azevedo, e imediatamente me aplicou a medicação de urgência. Dentro de alguns minutos a dor começou a passar e eu já respirava quase normalmente. Enquanto me media a pressão arterial, Faraco me pediu que lhe descrevesse com exatidão o que sentira. O meu superego censurou minhas palavras com a intenção de minimizar a gravidade de tudo quanto me afligira na fase aguda da crise. Ah! Repito que invejo os homens que têm a coragem de gritar, gemer ou chorar quando sentem alguma dor forte. Esses, sim, são os verdadeiros heróis.


11

Pouco depois o Dr. Décio me submeteu a um eletrocardiograma. A intervalos freqüentes mediam-me em discreto silêncio a pressão arterial, que devia estar altíssima... ou baixíssima? E eu procurava ler nos olhos de ambos o que estavam pensando de meu estado, mas não ousava fazer-lhes nenhuma pergunta.
Algumas horas mais tarde eu me sentia completamente aliviado e já com a tendência otimista de considerar "encerrado o incidente". Ia retomar a minha vida normal — pensava — e voltar a trabalhar no livro. Faraco, porém, me recomendou ou, antes, me ordenou que permanecesse deitado no maior repouso, evitando qualquer esforço desnecessário e até mesmo necessário.
Quando os médicos se foram, apanhei um livro de Thomas Mann e pus-me a ler, procurando resignar-me à condição de doente. Afinal de contas, refleti, eu precisava mesmo dumas férias... Sentia-me bem agora, e não estava sequer preocupado. (Tenho verificado que os perigos reais me atemorizam menos que os imaginários.)
Agitei-me na cama durante todo aquele dia, em que recebi muitas visitas de amigos, aos quais tratava de explicar que sofrerá apenas uma crise hipertensiva.
Luís Fernando rondava-me o leito, com ar apreensivo, perguntando-me de instante a instante como eu me sentia ou se precisava de alguma coisa. Sua solicitude me fazia bem.
Chegou a noite. Tornei como de hábito um tranqüilizante e creio que dormi um sono sereno. Despertei, porém, estonteado, com uma sensação de ressaca, a cabeça pesada, o corpo dolorido, e pressentindo a volta da dificuldade respiratória da véspera. Pedi a Mafalda que me viesse barbear com o aparelho elétrico. Tomei sem muita vontade um chá com torradas secas. Acendi o rádio de cabeceira e sintonizei-o com a estação da Universidade do Rio Grande do Sul. Uma voz anunciava o Concerto para violoncelo e orquestra, de Dvorak. Coloquei o aparelho a meu lado, na cama. Os primeiros compassos do concerto coincidiram com os primeiros descompassos de meu coração, que de novo rompeu a tocar alarma. E voltou-me, aguda, a dor no peito e outra vez lá estava eu a lutar em busca de ar, sozinho no quarto... Isto passa. Não é nada. Isto passa. Deitei-me de bruços, apertei o lado esquerdo do peito contra o colchão. Por alguns segundos ainda procurei prestar atenção à música, tentando provar a mim mesmo — na minha aversão à anormalidade — que tudo estava bem ou, pelo menos, não estava muito mal. Por fim apaguei o rádio. O violoncelo ficou ainda gemendo obsessivamente o tema do concerto dentro de mim, na cabeça e no peito, ao ritmo desordenado de meu sangue em pânico.
Quando Mafalda, minutos depois, entrou no quarto e me encontrou a arquejar e gemer, movendo a cabeça dum lado para outro sobre o travesseiro empapado de suor, fez meia-volta e precipitou-se para o telefone.
Quanto tempo permaneci nessa misteriosa e invisível fronteira que separa a vida da morte? Uma semana? Dez dias? Menos, muito menos que isso? Não sei.
Vultos, faces, vozes, impressões, sensações ligadas à fase aguda de meu acidente cardíaco voltam-me agora à mente, alguns claros, outros esfumados, mas eu não saberia colocá-los na sua devida ordem cronológica. O tempo como que passou a ser função do espaço daquele quarto ou, melhor, do espaço de meu cérebro. Estive quase permanentemente sob o efeito de sedativos, alternando períodos de sono profundo com intervalos duma aguda lucidez, em que não perdia nada, nada do que passava ao meu redor. Durante esse prolongado crepúsculo, pessoas entravam ou saíam do quarto na ponta dos pés, sentavam-se ao lado da minha cama, e eu ouvia murmúrios, via apagarem-se ou acenderem-se luzes veladas e como que sentia a presença de muita gente, muitos amigos nos outros compartimentos da casa.
Não sei por que me ocorre agora esta imagem: a minha lucidez mental nos momentos de vigília era como um caroço metálico e luminoso fechado no âmago dum fruto de escura polpa, em processo de deterioração.
Tinham-me proibido de falar e exigiram de mim uma imobilidade de estátua. Entreguei-me completamente aos médicos, pois me pareceu que assim burlaria a Moura Torta. Creio que jamais me queixei ou sequer senti necessidade disso. Aceitei aquele jogo com todas as suas regras. Exercitei como nunca na vida as minhas faculdades de faquir.
Como certa noite um dos doutores, ajudado por uma enfermeira, procurasse em vão as minhas veias mal visíveis e esquivas, para cravar numa delas a grossa agulha presa a um tubo de borracha ligado ao vidro de soro fisiológico que me devia alimentar, senti um arrepio pelo corpo todo, produzido não pela dor das repetidas picadas mas pela impressão visual delas. Resolvi então, num mecanismo de defesa, ausentar-me em espírito daquele quarto, fechei os olhos e busquei na memória momentos agradáveis de meu passado. Deixando o corpo na cama, transportei-me para um certo anoitecer de fevereiro de 1959, em Portugal. Tinha acabado de descer do automóvel de meu editor português em Conímbriga, nas proximidades de Coimbra. íamos ver umas ruínas romanas. O céu, onde cintilava a estrela vespertina, e o ar, que o frio hálito da noite embalsamava, pareciam feitos do mesmo translúcido cristal azulado. O perfil negro dum bosque recortava-se contra o poente carmesim. Mafalda estava a meu lado, seu braço no meu braço. Eu via o perfil de Souza Pinto, que fumava serenamente o seu cachimbo, e o vulto mais claro de Luís Fernando, encolhido dentro de seu sobretudo gris. Ouvia a voz do escritor Jorge de Sena, que dissertava com despretensiosa erudição sobre aqueles vestígios do império romano. Depois ficamos os cinco calados, a ouvir os grilos, que davam um extraordinário acento ao silêncio da noite recém-caída. Pensei: "Eis um momento que jamais poderei esquecer...".
Em muitas outras instâncias, durante o período agudo de minha enfermidade, tornei a fugir para Conímbriga, que passou a ser um símbolo de paz, bem-estar e esperança, um antídoto para muitos dos venenos que tentavam infiltrar-se no meu espírito. Houve ocasiões, porém, em que minha fantasia mudava de trajetória. Revisitei uma noite a Piazza de San Marco, quedei-me à frente da Basílica, olhando para a lua cheia que luzia acima do Palácio dos Doges e do Grande Canal, no veludoso céu de Veneza. Voltei também à Piazza Navona, em Roma, e andei a caminhar ou, melhor, a flutuar no ar ao redor de suas fontes barrocas. E em mais duma situação de desconforto ou dor invoquei a imagem de meus netos, e tive Mike e Paul sentados na cama, a meu lado.
Muitas vezes despertava de meu sono, alta madrugada, para ver no meu campo de visão a face séria e intensa de um dos muitos assistentes do Dr. Faraco. Havia sempre um deles de plantão à minha cabeceira, noite e dia. Jamais poderei esquecer-lhes as feições e os nomes. O Dr. Décio... O Dr. Achutti... O Dr. Nedel... O Dr. Zelmanovitz... O Dr. Gross-mann... O Dr. Zaducliver... O Dr. Praeguer... Ah! Havia também a laboratorista Dóris, de cabelos ruivos, que ficava encabulada quando me ouvia dizer com voz sumida que ela se parecia com Deborah Kerr; Dóris, que me vinha colher sangue todos os dias e que ficava perturbada e quase chorava quando desconfiava que me estava causando alguma dor ou mal-estar. Eu não podia deixar de sorrir quando via ao lado do leito o meu amigo Dr. Alberto Rosa, com sua respiração forte, seus cabelos de fogo, e que com sua lenta, grave voz de trombone me dizia piadas impublicáveis, procurando fazer-me esquecer ou sentir menos as manipulações um tanto desagradáveis a que me submetia.
Uma noite (ou teria sido um dia?) abri os olhos e vi sentado na cama, a auscultar-me o peito com seu estetoscópio, o meu primo, Dr. Franklin Veríssimo. E a sua presença me deu curiosamente a mesma impressão de segurança que me produzia o nosso avô quando entrava no meu quarto de menino para me tratar de alguma febrícula de resfriado, e acabava por me receitar papéis de calomelano. Sorri para mim mesmo, recordando que duma feita, já rapaz taludo, eu carregara nos braços o filho recém-nascido de meus tios Fabrício e Daura.
Trouxeram um. dia dois torpedos de oxigênio para junto de minha cama. Vozes brotadas das profundezas de meu passado cruz-altense murmuraram pressagas: "Ai, comadre! O homem está nas últimas. Imagine que já estão dando pra ele balões de oxigênio!".
Permaneci durante uns poucos dias dentro duma tenda de oxigênio, com uma sonda metida no nariz, além das muitas outras distribuídas por várias partes do corpo. Parecia um astro-
nauta dentro de sua cápsula. E assim andei em estranhos vôos tanto pelo espaço exterior como pelo interior.
Mafalda estava sempre a meu lado. Evidentemente eu não lhe estranhava a dedicação, mas admirava-me de sua coragem e da calma que lhe permitia ser uma enfermeira tão eficiente. Mais tarde fiquei sabendo que à primeira hora Faraco lhe dissera: "Teu marido não deve ler na expressão de teu rosto que o estado dele é- muito grave. Portanto, conto contigo. Quero que te portes como se o índio estivesse apenas gripado". Ela sacudiu afirmativamente a cabeça, pediu socorro ao seu belergal e preparou-se para enfrentar a situação. Também fiquei surpreso de ver um dia a minha mãe entrar no quarto e olhar-me de maneira natural — ela que tanto entristecia e apiedava-se de mim quando me via abatido na cama por um resfriado comum. Descobri depois que a Velha fora também doutrinada por Faraco.
Quando um jornalista lhe perguntou mais tarde se ela confiava no meu restabelecimento, D. Bega respondeu numa decidida afirmativa: "O Tibicuera não se entrega assim no mais".
Tinha razão. Eu estava decidido a continuar vivo. Uma vez me veio à mente o desenho linear que ilustrava a Parábola das Varas, numa página de um velho livro de leitura escolar. Representava um ancião de longas barbas brancas deitado no seu leito de morte, cercado de dezenas de filhos, filhas, noras, genros, netos e bisnetos. Para o menino que eu era então, os homens só podiam morrer ou, melhor, "entregar a alma ao Criador", ao cabo duma longa, longa vida bem vivida e fecunda; e sempre, antes de "exalarem o último suspiro", pronunciavam alguma frase cheia de beleza ou sabedoria. Ora, eu não me sentia ainda um ancião — apesar da definição dos dicionários. Não queria considerar encerrado o ciclo de minha vida de homem e de escritor. Desejava rever ainda Clarissa, Mike, Paul, Dave... Sim, e ver Luís Fernando casado. Sonhava com os netos que ele nos poderia dar um dia. Precisava rever pelo menos mais uma vez Portugal, a Itália, a França, a Espanha... E — claro! — tinha de terminar O Arquipélago e transferir para o papel os muitos outros romances que sentia dentro de mim. E, acima de tudo, não podia cometer a traição de abandonar Mafalda naquele trecho de nosso caminho. E por que não simplificar toda a estória dizendo simplesmente que amava apaixonadamente a vida?
Faraco estava constantemente à minha cabeceira. E agora que minha situação melhorava, e eu já estava fora da tenda de oxigênio, quando ele aparecia diariamente pela manhã, aproximava-se de mim e perguntava: "Como te sentes, índio?". E eu respondia: "Bem. E tu?".
O longo crepúsculo aproximava-se do fim. Amanhecia um novo dia. E como poderia eu, com meu pudor das palavras e dos gestos dramáticos, mostrar minha gratidão a toda aquela gente que, capitaneada pelo Dr. Faraco, se empenhara naquele jogo de cabo-de-guerra em que eu era a corda e a Morte o adversário?
Muitos meses mais tarde, quando o primeiro tomo de O Arquipélago apareceu, dei um exemplar dele ao meu médico com esta dedicatória:
Ao querido amigo Faraco, sem cuja oportuna colaboração eu /amais teria podido terminar este livro.


12

Afirmava Freud que, na maioria dos casos, o homem recorre ao humor numa tentativa de aliviar a ansiedade e a tensão, atenuando os aspectos ameaçadores de tudo quanto é estranho, agressivo, difícil ou obscuro. Agora, mais que nunca, eu percebia como o velho Sigmund enxergava longe e claro.
Um dia Faraco permitiu que meu editor Henrique Bertaso — homem extremamente sensível — entrasse no meu quarto para uma breve visita, sob a condição de não me fazer falar. O amigo aproximou-se de mim. Revirei os olhos como quem se debate nas vascas da agonia e sussurrei: "Vou te fazer o meu último pedido". Emocionado, ele esperou que eu prosseguisse. "Quero que me pagues 20 em vez de 10 por cento sobre o meu próximo livro!" Henrique rompeu a rir, com os olhos brilhantes de lágrimas.
Mais tarde, quando eu já me encontrava fora de perigo, Mafalda anunciou que nosso amigo e vizinho Ernani Kramer viria visitar-me. "Toma cuidado" — recomendou-me ela — "o Ernani já teve um problema de coração e está muito nervoso por causa da tua doença". Preparei-me então para receber convenientemente o visitante. Quando ele entrou no quarto, encontrou-me com o rosto coberto por uma grotesca máscara de papelão, com um nariz descomunal e negros bigodões eriçados. Ao ver aquele "estranho" estendido na cama, estacou à porta, no primeiro instante de surpresa e incompreensão. Depois, como um legítimo homem da fronteira do Rio Grande do Sul, bradou: "Ora, vai-te à merda!". Estou certo de que desse modo aliviei,a tensão nervosa de meu amigo, permitindo que a visita tivesse para ambos um caráter agradável e positivo.
Dias mais tarde, outra pessoa de minhas relações, um jovem jornalista, sentou-se ao lado de minha cama e, depois de indagações formais sobre minha saúde, num misto de gentileza e falta de assunto' indagou: "Então, quando é que vai candidatar-se à Academia Brasileira de Letras?". Olhei para ele, grave, e respondi: "Como posso ser um candidato, meu filho, se já sou quase uma vaga?". O escritor John dos Passos me mandou um cabograma em que dizia, parodiando Mark Twain, que os boatos sobre minha morte tinham sido grandemente exagerados. Sim, porque um jornal e uma estação de rádio haviam anunciado que eu falecera. Tive o bom-senso de não acreditar na notícia...
Durante a minha semana negra — contaram-me — um vespertino de escândalo de Porto Alegre, hoje desaparecido, mandou à minha casa um de seus repórteres com a missão de me fotografar "no leito de morte". Como a casa estivesse sempre cheia de dedicados amigos, o fotógrafo aproveitou o vaivém para insinuar-se de sala em sala, sem ser percebido. Estava já a entrar no meu quarto quando o Dr. Faraco lhe barrou o caminho. O rapaz ainda insistiu em aproximar-se de mim, de câmara em punho, alegando que um homem público como eu não podia nem devia ter uma morte privada. Faraco — bendita Calábria — pô-lo para a rua com a maior energia.
Teve o meu médico a idéia para mim feliz de não me remover de minha casa em nenhuma fase da doença. Isso me tornou mais ameno o período de convalescença. Arranjou-me uma cama de hospital, que eu pedi fosse colocada ao pé da janela, cujas grades estavam cobertas por uma buganvília pintada de flores escarlates. Foi então que vi o céu, a rua e o outono. Os cinamomos que orlam a nossa calçada estavam com suas folhas completamente douradas, já a tombarem. A luz de abril tinha o tom e a doçura do mel.
Para um homem como eu, com tendências para o quietismo, não foi muito penoso ou aborrecido permanecer durante sessenta dias e noites completamente imóvel. Eu me divertia conversando com minha mulher e meu filho, lendo ou então ouvindo música graças ao pequeno rádio de cabeceira. Sim, e revendo os amigos, recebendo os primeiros visitantes. Ninguém pronunciava a palavra enfarte. Eu queria aceitar a explicação que Faraco me dava — para não me alarmar — de que eu havia sido vítima duma "crise hipertensiva".
Mafalda agora me mostrava as cartas, cartões e telegramas que tinham chegado naquelas últimas semanas e continuavam a chegar: gente que me mandava votos de pronto restabelecimento e palavras de conforto. O afetuoso recado que Betty e John dos Passos me haviam enviado aparecera inexplicavelmente reproduzido na imprensa do Rio, de São Paulo e de Porto Alegre três dias antes de seu original chegar-me às mãos.
Um simpático repórter, então, me pediu lhe desse uma lista completa das "pessoas importantes" que me haviam mandado mensagens desse tipo. Respondi que todas as pessoas que se interessavam pela minha saúde me eram igualmente importantes. E que as que não se interessavam também eram.


13

Certa manhã perguntei ao Dr. Faraco, meio a medo: "Não achas que agora posso trabalhar um pouco?". Ele franziu a testa. "Se podes trabalhar? Eu te diria que deves. Mas devagar, nada de exageros."
Tive uma esquisita sensação quando Mafalda me trouxe as mil e seiscentas e poucas páginas originais de O Arquipélago. Senti até um prazer tátil ao manusear aquelas folhas de papel. Retomei contato com as minhas personagens. Achei que estavam ainda vivas, como eu.
Do pequeno rádio saiu uma voz que anunciava o Concerto para violoncelo e orquestra, de Dvorak. Meu primeiro ímpeto foi o de desligar o aparelho, pois aquela música me evocava um momento de dor, angústia e perigo. Contive-me, porém, e ouvi o concerto até ao fim. Tinha de me habituar a conviver tão pacificamente quanto possível com todas as memórias daqueles últimos meses, por mais desagradáveis que fossem.
Faraco me emprestou uma estante de madeira feita especialmente para quem quer escrever na cama, e pus-me a examinar os originais do romance com olho crítico. Embora não tivesse chegado ainda ao fim da estória, decidi começar a fazer emendas, acréscimos e cortes nas páginas já escritas. Destruí o primeiro capítulo, o em que Rodrigo sofre seu edema pulmonar agudo, e reescrevi-o por inteiro, usando da experiência adquirida durante a minha própria doença. No primeiro dia trabalhei apenas vinte minutos. No segundo, meia hora. No fim da semana minha média diária de trabalho era de três horas. Um dia estava de tal modo interessado no Dr. Rodrigo Cambará, na sua saúde, nos seus problemas sentimentais e políticos, que Mafalda teve de intervir com oportuna energia para evitar que eu ficasse a escrever das duas às sete da tarde.
Eu sabia que o pai de Floriano ia morrer no último capítulo do livro, e isso me dava uma certa pena. Aquele homem sensível e sensual adorava a vida. Tinha apenas cinqüenta e nove anos... Pensei assim: tenho o poder de vida e de morte sobre essa criatura, apesar de todos os seus atos e pensamentos de independência. Que ente, que força, que deus decide sobre a minha vida e a minha morte? Um simples, minúsculo coágulo de sangue me pode fulminar dum momento para outro. Quantos anos de vida ainda terei?
Olhei para Mafalda, que tricoteava ao lado de meu leito, e disse-lhe: "Sabes duma coisa? Em outubro deste ano estaremos nos Estados Unidos com nossos filhos e netos!".
Ela ergueu a cabeça e respondeu: "Sim, se o Faraco te der licença".


14

Deixei a cama ao cabo de sessenta dias e, lânguido, as pernas fracas e trêmulas, dei os primeiros passos até uma cadeira, amparado por um dos médicos que, em seguida, me mediu a pressão arterial e me tomou o pulso.
Dentro de uma semana, com o consentimento do "tirano de Alegrete", caminhei ajudado por Mafalda até ao gabinete de trabalho. E desse dia em diante passei a escrever lá, sentado numa poltrona ao pé da lareira. As semanas passavam. O Dr. Faraco e o Dr. Décio continuavam nas suas visitas regulares, auscultando-me, medindo-me a pressão arterial e submetendo-me a eletrocardiogramas. E Deborah Kerr aparecia com freqüência para colher e levar para seu laboratório alguns centímetros cúbicos do meu sangue.
Durante o dia eu tomava a horas certas uma grande quantidade de comprimidos e cápsulas das mais diversas cores, tamanhos e formatos. Agora ali perto da eletrola, podia ouvir os meus compositores do seicento e do settecento. A música que mais me lembra essa época da minha vida é o solo de oboé do segundo movimento da Cantata da Páscoa, de Bach, em geral conhecido pelo nome de Sinfonia. É uma de minhas melodias mais queridas: lento lamento bucólico, duma extraordinária pureza de desenho.
Tive finalmente permissão para sair à rua. Fazia um frio moderado, seco e gostoso. Dirigi-me vagarosamente até uma das barbearias do bairro, uma espelunca duma sujeira e dum primitivismo comoventes, e pedi ao barbeiro que me cortasse o cabelo. Depois voltei para casa, em lua-de-mel com o mundo e a vida.
Em julho entreguei a Henrique Bertaso as mil e seiscentas folhas originais de O Arquipélago, na sua versão definitiva. Em fins de setembro recebi as páginas de prova do livro e revisei-as todas antes de deixar o país, pois o Dr. Faraco me dera por fim a desejada luz verde para a viagem. Prometi ao editor mandar-lhe dos Estados Unidos os capítulos finais do livro, os quais não havia ainda começado a escrever. Mais uma vez, portanto, teria de lutar contra o "sortilégio de Washington".
Foi sentado na minha poltrona ao pé da lareira, ainda em Porto Alegre, que recebi decepcionado a notícia da renúncia de Jânio Quadros. E foi dali também que pelo rádio acompanhei o movimento pró-legalidade liderado por Leonel Brizola.
Em outubro daquele para mim memorável ano de 1961, Mafalda e eu embarcamos num Boeing da VARIG, que nos levou em vôo sereníssimo do Rio a Nova Iorque.


15

Os Jaffe moravam agora em casa própria, no condado de Fairfax, em Virgínia, num simpático rambler com um quintal que, comparado com o nosso pátio, chegava a ter ares de latifúndio. Mafalda me proibiu terminantemente de servir de montaria para os dois galantes cavaleiros, Sir Mike e Sir Paul. Resignei-me então à condição de cavalo velho que não servia mais nem para puxar uma pipa dágua.
Clarissa comunicou-nos que um novo filho estava a caminho. Minha mulher e eu, que pensávamos passar apenas quatro ou cinco meses com os Jaffe, decidimos então prolongar a visita, a fim de esperar o nascimento de nosso terceiro patrão.
Foi fechado num quarto "à prova de netos" que continuei a escrever O Arquipélago, trabalhando intensamente de seis a sete horas por dia, resistindo à tentação de abrir a porta sempre que um dos meninos batia nela e me convidava a tomar parte na sua vadiagem lúdica. Foi nesse cubículo que escrevi O Diário de Sílvia, A Encruzilhada e várias páginas do Caderno de Pauta Simples.
Durante aqueles meses reli algo de Joseph Conrad e Aldous Huxley, continuei o meu convívio com Georges Simenon e me deliciei com o Stones oi Florence, de Mary McCarthy. Caiu-me um dia nas mãos um volume de Henry Miller, The Colossus of Maroussi, em que esse escritor narra a sua viagem à Grécia. Voltou-me então, com uma força luminosa, o velho desejo de visitar a Ática, o Peloponeso e as ilhas do mar Egeu.
"Vamos à Grécia?" — perguntei um dia a Mafalda. A companheira achou bom o convite, mas repeliu a idéia de entrar de novo num avião. Achava que devíamos tomar um navio italiano que nos levasse segura e tranqüilamente até Gênova, de onde seguiríamos de ônibus para Roma e outras cidades italianas de nossa afeição. Depois, Paris, Amsterdam, Londres...
Em março de 1962 pinguei o ponto final em O Arquipélago, remeti imediatamente os originais ao meu editor e concluí que merecia umas férias mediterrâneas. Para criar o fato consumado comprei imediatamente duas passagens aéreas de ida e volta entre Nova Iorque e Atenas. Mafalda resignou-se à fatalidade.
Embarcamos em meados de abril, quando as cerejeiras de Washington D. C. começavam a florescer.


CAPITULO II

SOL E MEL


1

Quem hoje visita a Grécia na esperança de lá encontrar os esplendores de sua idade clássica estará condenado a uma decepção e ao mesmo tempo correrá o risco de não prestar a devida atenção ao que esse delicioso país nos pode ainda oferecer de belezas e surpresas. Se por um lado — exceção feita à Acrópole — as mais bem preservadas ruínas de templos gregos acham-se no sul da Itália, por outro a mesma luz que iluminou o século de Péricles cai ainda sobre a Grécia moderna: um sol de ouro novo que às vezes de tão claro parece de prata. E lá estão ainda o céu e os mares de Homero, o ar fino e translúcido e, sim, as ilhas!
A Grécia é um país de pequenas cidades, vilas e aldeias. Nisso e na graça idílica de certas regiões, como as colinas de Epidauro e a planície da Argólida, ela nos lembra Portugal: duas pequenas nações de brava gente afeita às lides do mar.
Atenas nos surpreende pelo seu aspecto de cidade nova, um tanto pobre de relíquias arquitetônicas. Estendida entre o Monte Licabetos e a Acrópole, cerca-os com suas casas pintadas em tons claros, os seus parques e praças dum verde profundo, e se vai rumo do Pireu, com o qual hoje forma praticamente uma única metrópole.
Quanto à paisagem humana, seria injusto olhar para o primeiro grego que encontramos nas ruas de Atenas ou outra qualquer cidade do país, e compará-lo fisicamente com o Hermes de Praxíteles. Hoje o helenismo dos gregos está, por assim dizer, muito diluído. Através do tempo, das invasões e das migrações sua pureza foi comprometida por cruzas com eslavos, francos e turcos. O tipo que em nossos dias predomina na Grécia é o moreno de cabelos escuros. O grego é o homem que ama cantar e dançar. Como o calabrês e o siciliano tem um entranhado senso de hospitalidade, honra pessoal e de família. Lembra o judeu em sua paixão pela polêmica. É rico em gestos folclóricos como o mexicano. Barulhento e palrador como o latino-americano das Caraíbas, gosta de discutir mais por amor à discussão do que à verdade. Como o espanhol, freqüenta com gosto as suas tabernas, cafés, praças, parques e ruas. Como o brasileiro aprecia as anedotas, é o homem do aqui e do agora. Bravo como soldado, é o mais leal dos amigos e o mais feroz dos inimigos.


2

Comemorei o primeiro aniversário de meu enfarte subindo a pé a colina da Acrópole às cinco da tarde dum resplendente dia ático. Lacretelle tinha razão quando escreveu que ao sol do entardecer as pedras do Partenon assumem uma cor fulva de pêlo de leão. Contemplamos Atenas de todos os ângulos que esta colina nos oferece. Daqui avistamos o Monte Himeto, com o mel de cujas abelhas os literatos do passado costumavam lambuzar seus escritos em prosa e verso; o templo de Zeus, o Arco de Adriano, o Estádio, o Pireu com seus navios atracados e sua floresta de mastros sobrevoados por gaivotas.
Amigos, esqueçamos por um momento a Atenas moderna, pensemos neste simples fato, para mim comovedor. Estou diante do Partenon! Foi aqui que, por assim dizer, começou a chamada Civilização Ocidental. Alguém — quem foi mesmo, ó memória? — disse que o Partenon é "a inteligência petrificada". A sua singeleza de linhas, as suas sutilezas arquitetônicas dão a esta estrutura uma serena majestade, uma indescritível impressão de equilíbrio e harmonia.
Como tão bem observou Edith Hamilton, por causa do que fizeram há dois mil e quatrocentos anos os artistas e os homens de pensamento desta então pequena cidade da Ática, nós hoje em dia pensamos e sentimos de maneira diferente da dos povos bárbaros.
Desde a mais remota antigüidade, desde os tempos tribais, aceitava-se como ponto pacífico a idéia de que a pessoa humana não tinha nenhuma importância. Na civilização egípcia, que se desenvolvia supersticiosamente à sombra da morte e dos mortos, as massas viviam escravizadas a faraós divinizados, inaproximáveis, intocáveis e que tinham poderes despóticos sobre seus súditos. Os egípcios encolhiam-se num temor reverente diante do invisível Os gregos, ao contrário, faziam especulações em torno do mistério, através do uso lúcido da inteligência e da razão, numa atitude não só de saudável irreverência como também de curiosidade e bravura intelectuais. Foram eles os primeiros a criar um vocabulário adequado ao jogo das idéias abstratas — tudo isso sem perder o gosto pelos aspectos visíveis e plásticos do mundo. Realizando uma façanha maior e mais importante que a dos navegadores do futuro, desvenda-dores de novos continentes, os helenos descobriram o homem e o valor do espírito, e assim legaram à posteridade a Ciência, a Filosofia, a Literatura, a Arte, a Tragédia, o Diálogo, a Democracia, em suma, o Humanismo. E agora, enquanto contemplo as colunas do Partenon, soam-me na mente as palavras de Anaxágoras: Todas as coisas estavam no caos quando surgiu o intelecto e criou a ordem.
Os poemas de Homero — refleti — estão cheios dessa alegria de viver, desse insaciável desejo de saber, indagar, alargar horizontes interiores e exteriores que caracterizavam os gregos da antigüidade. De súbito ocorre-me que o poeta de Ulisses era cego — como afirmavam alguns historiadores —, não conhecia esta extraordinária luz da Grécia, que agora nos entra pelos olhos, pelos poros e como um vinho suave nos deixa numa espécie de embriaguez que é a um tempo paradoxalmente exaltação e paz.
É verdade que na Grécia antiga, mesmo na Era de Péricles, a escravidão era aceita como coisa natural, e que muitas vezes Atenas e Esparta empenharam-se em guerras cruéis e insensatas, sim, e que Sócrates foi condenado à morte. Mas, feitas as contas finais, que fabuloso saldo positivo essa civilização ática nos transmitiu!
Tenho uma admiração particular por Eurípedes, que foi o primeiro a mostrar que a escravidão era um mal, e que nenhum homem deve consentir em submeter-se servilmente a outro homem. Segundo esse mestre da tragédia: Escravo é aquele que não pode dizer o que pensa.
Lugar-comum? Truísmo? Ora, quando pensamos em todas as ditaduras, — civis, militares ou híbridas —, nos estados totalitários cujo número está aumentando no mundo com um caráter quase epidêmico, temos ímpetos de, por mais óbvia que pareça a frase de Eurípedes, proclamá-la muitas e muitas vezes a todos os ventos.


3

Passamos em Atenas dias muito agradáveis, graças principalmente à hospitalidade que nos dispensou o embaixador do Brasil, Antônio Mendes Vianna, homem erudito e inteligente, de prosa brilhante e pitoresca, grande conhecedor da Grécia, tanto da antiga como da moderna, pois não só tem lido, e bem, tudo quanto de mais importante já se escreveu sobre a história e a cultura gregas, como também tem percorrido este país de automóvel, em todas as direções, visitando recantos onde o turista comum jamais pôs o pé. Para isso enfrenta desconfortos, dificuldades e até perigos, movido por uma autêntica curiosidade intelectual, mesclada duma paixão helenista que chega a ser quase carnal.
A escritora Lydia Besouchet — que havia muito eu conhecia e admirava — e sua sobrinha Olga estão hospedadas na residência do embaixador. Mafalda estabelece com ambas, desde o primeiro momento, excelente camaradagem.
No seu Mercedes-Benz negro dirigido por Kosta, um grego nascido no Egito, figura digna dum romance, Mendes Vianna nos leva pela Ática até ao Cabo Sunion. Subimos a encosta do monte em cujo topo se erguem as colunas derrocadas do templo de Poseidon, num dia em que Éolo está de mau humor e com seu sopro furioso e frio arrepia as águas do Egeu, as copas das árvores, os nossos cabelos e a nossa epiderme.
Uma noite vamos jantar numa taberna da Plaka, o velho bairro de ruas labirínticas situado na encosta da colina da Acrópole, e lá, ao som de canções gregas cantadas por dois homens com aspecto de funcionários públicos, que se acompanham tocando bouzoukee, comemos mezédes, isto é, hors d'oeuvres; moussaka, um prato de "sustância" em que várias camadas de carne moída misturada com berinjela alternam-se com camadas de queijo e purê de batatas — tudo isso lubrificado com muito óleo de oliva. Os pratos nos chegam, ricos, variados e em porções generosas: souvlákia, nacos de carne assada em espetos e temperada com manjerona; carneiro recendente a basilicão; taramata salata, que tem o nome mais bonito que o gosto. Aprecio especialmente as gordas alcachofras gregas, que se nos servem despidas de suas pétalas e que parecem grossas taças de jade invertidas, boiando num dourado lago de azeite com manchas rosadas de vinagre. Provo ouzo, que sabe a anis, e retsina, vinho feito com uvas da Ática e aromatizado com a resina dos pinheiros desta ensolarada península. O gosto dessa curiosa bebida tem dois tempos: o primeiro nos dá a impressão de estarmos ingerindo um dentifrício amargo, o segundo nos deixa na boca um pós-sabor que acaba induzindo-nos a beber mais, ma non troppo.


4

Visitamos um dia Elêusis, onde o nosso anfitrião nos fala nos Mistérios. Depois leva-nos a Corinto por uma bela estrada que serpenteia entre as montanhas e o mar, e que, do outro lado do canal, corta os trigais que crescem verdes por entre as cepas das vinhas, variolados pelo vermelho-vivo das papoulas semeadas pelos pássaros e pelos ventos. Depois contemplamos de perto o Acrocorinto, onde, segundo a lenda, Sísifo rolava acima e abaixo a sua pedra, numa tarefa exasperante para si mesmo mas utilíssima para os filósofos e beletristas dos séculos que estavam por vir.
Na calçada duma taberna, no cais de Megara, comemos calamares fritos e dulcíssimas laranjas de polpa avermelhada e casca grossa. E eu fotografo Olga em cores — Pomona! — com uma braçada dessas laranjas que parecem sóis, contra um fundo formado por casinholas cúbicas e caiadas, com janelas debruadas dum azul quase idêntico ao deste vasto, luminoso céu sob o qual lagarteiam adormecidos os barcos do pequeno porto.
Dois dias mais tarde, com Lydia e Olga, fazemos de ônibus o giro clássico do Peloponeso. Pernoitamos em Náuplia. Na manhã seguinte visitamos Epidauro e seu famoso anfiteatro. Prosseguimos pela planície da Argólida e vamos almoçar em Micenas. Absolvo Clitemnestra de todos os seus pecados, não só o de adultério como também o de ter incitado seu amante Egisto a assassinar Agamenon. Porque Micenas, amigos, áspera, árida e cor de aço, é um cenário que convida à tragédia.
Aqui ninguém pode fugir à Fatalidade. E Clitemnestra, afinal de contas, deixada a sós pelo marido, que fora guerrear em Tróia, não devia ter muito com que ocupar o seu tempo. O resto foi obra do Destino. (Aristóteles afirmou que a tragédia nos purifica através da piedade e do temor reverente, e que os homens libertaram-se de si mesmos depois que compreenderam juntos o sofrimento universal da vida.)


5

Que verde, grave paz, que idílica atmosfera nos envolve no vale onde se encontram as ruínas da gloriosa Olímpia! Durante mil e duzentos anos aqui pulsou o coração da civilização grega. Foi aqui que Píndaro declamou suas odes, exaltando os atletas vitoriosos nos jogos olímpicos.
Visitamos o museu local. Ali está, quase intacto, o frontão do templo de Zeus. A estória que esse grupo escultural conta tem sabor picaresco. Mal resumida, é assim. Peritons, rei dos lápitas e, ao que parece, homem de boa vontade, convidou os centauros para a festa de sua boda com a bela Deidâmia. Ora, os centauros, que sempre estavam prontos para uma boa farra, galoparam sôfregos para o palácio do rei, comeram e beberam a fartar e, excitados, puseram-se a atacar as mulheres presentes. Um deles agarrou logo a noiva. O noivo, enfurecido, partiu a cabeça do agressor com um golpe de machado. Começou então o entrevero que o escultor procurou fixar no mármore. À esquerda do frontão vejo um centauro segurando com uma das mãos a cintura duma lápita, ao passo que com a outra lhe aperta o seio, procurando ao mesmo tempo derrubar a moça no chão. Descubro um centauro de maus hábitos atracado com um efebo. E no centro do frontão avulta, bela, serena e dominadora, a figura de Apoio, com o braço erguido num gesto de quem procura majestaticamente restabelecer a ordem.
Se conto a anedota é para chamar a atenção do leitor para a natureza humana das figuras mitológicas gregas, e para insinuar que o homem, em certos aspectos de seu comportamento individual e social, não tem mudado muito nestes últimos quatro ou cinco mil anos.
A única coisa que importa agora é a imponente beleza, e até estou inclinado a dizer perfeição deste grupo escultural. Por esta .amostra imagino o que teria sido o templo de Zeus na idade áurea de Olímpia.
Disse Simônides que a pintura é a poesia silenciosa e* a poesia uma pintura da voz. Sempre me senti atraído tanto pela pintura como pela poesia — embora careça de talento para ambas —, mas nunca fui muito entusiasta da escultura.
Esta visita à Grécia, entretanto, está me fazendo olhar a escultura com outros olhos, principalmente agora que estou a dois passos da obra-prima, de Praxíteles, sobre a qual Edith Hamilton escreveu estas palavras reveladoras: O Hermes Olímpico é um ser humano de beleza perfeita, nada mais, nada menos. Cada detalhe de seu corpo foi modelado de acordo com um conhecimento consumado dos corpos reais. Nada se acrescentou para marcar sua deidade, nenhuma auréola em torno da cabeça, nenhum cajado místico, nenhuma sugestão de que aqui está aquele que guia a alma para a morte. A importância da estátua do artista grego, a marca da sua divindade, é sua beleza, apenas isso.
Além das três mulheres que acompanho, só vejo nesta sala um turista alemão, feio, magro, desengonçado, ruivo, de enorme nariz, a pele duma brancura oleosa de queijo. Examina a estátua com um interesse de estudioso. E Lydia Besouchet, olhando do Hermes para o turista, murmura para nós: "Vejam a que ficou reduzida a raça humana depois de dois mil anos!".


6

Atravessamos o golfo de Corinto num ferry-boat, rumo de Delfos, onde chegamos ao anoitecer. Olhado da rua, o nosso hotel é uma casa simples de um único andar. Descobrimos depois que existem mais seis pisos para baixo, pois o edifício foi construído contra a encosta duma montanha.
O boy que leva nossa bagagem para o quarto que nos foi reservado, tenta comunicar-se conosco numa mistura muito confusa de italiano e inglês. Quer saber de onde somos. Respondo: "De Porto Alegre, Brasil". A cara do rapaz ilumina-se num largo sorriso. "Porto Alegre?" — repete. E exclama: "Grêmio!". É que a equipe de futebol do Grêmio Porto-Alegrense andou há pouco a jogar pela Grécia, onde ganhou quase todas as partidas.
Delfos oferece um dos mais belos e grandiosos cenários da Grécia — uma sucessão de montanhas, vales e gargantas duma deslumbrante riqueza cromática e plástica. Cumprimento em nome de todos os literatos passadistas o monte Parnaso, que nesta manhã de sol ostenta suas belas pedras rosadas com manchas dum cinza-azulado. Águias pairam sobre o seu cume, em vôos serenos. Encontro outro lugar-comum da retórica: a fonte de Castalia, e concluo, bairrista, que ela não é mais bonita ou imponente do que a Cascatinha da Glória, em Porto Alegre.
Mas nosso grande momento em Delfos — vistas as ruínas do Templo de Pítia, as do Estádio, as do anfiteatro; visitado o seu excelente museu, onde, entre outras notáveis peças, se encontra o Condutor de Biga — foi uma noite em que Mafalda e eu permanecemos calados no balcão de nosso quarto, contemplando a silhueta do monte Parnaso a dominar o vale forrado por mais de um milhão de oliveiras que se estendem até ao golfo de Corinto. O silêncio noturno era de tal modo profundo e ao mesmo tempo tão leve, que com um pouco de imaginação a gente poderia ouvir o brilho das estrelas.


7

De volta a Atenas, vimo-nos uma noite envolvidos sem querer nem saber num tumulto de rua. Estudantes, populares e soldados da Polícia engalfinhavam-se a socos e pontapés e trocavam-se pedradas. Tínhamos saído dum cinema e meus olhos ardiam e lacrimejavam. Disse à minha mulher: "Devia ser proibido fumar dentro dos cinemas". Foi então que percebemos 3 verdadeira razão de meu involuntário pranto. O ar estava saturado de gases lacrimogêneos. À frente do cinema soldados da Polícia assaltavam uma casa onde estudantes se haviam refugiado, quebravam os vidros das janelas, tentavam arrombar a porta... Tratamos de nos safar. Mas como nas cidades gregas, inclusive Atenas, o tema do labirinto é uma constante, ficamos a contornar quarteirões, a enveredar por becos e acabávamos sempre voltando ao mesmo lugar. Plantamo-nos a uma esquina sem saber que fazer. A luta continuava na Praça Omonia (omonia em grego é concórdia). Havia já muitas cabeças quebradas de lado a lado. Surgiram carros blindados, bloqueando a praça ou abrindo caminho implacavelmente por entre a multidão. As pedras do calçamento das ruas tingiam-se de sangue. Ouviam-se gritos de dor ou ódio. Metemo-nos por uma rua deserta e paramos à beira da calçada, na insensata esperança de caçar um táxi. De repente vimos precipitar-se rua abaixo, na nossa direção, um caminhão cheio de soldados com as cabeças protegidas por máscaras contra gases — o que lhes dava o aspecto de habitantes dum outro planeta. Ouvimos estampidos. Tiros? Em que direção? Mafalda rompeu a correr e abrigou-se atrás duma coluna que nem ao menos era grega, pois estávamos sob as arcadas dum edifício moderno. Eu a segui, já com uma pastilha de trinitrina debaixo da língua. Apesar de alarmados, não podíamos deixar de achar um nadinha cômica nossa situação, de sorte que tratamos de aliviar a tensão rindo. (Quantas vezes a franca risada desta companheira me tem ajudado em situações difíceis!) Passou por nós como um tufão o veículo com os soldados, que faziam explodir contra o calçamento as bombas lacrimogêneas. Pusemo-nos a chorar copiosamente. Encontrava-se agora a meu lado, vinda não sei de onde, uma senhora idosa, toda vestida de preto, que me cutucava e perguntava coisas em sua língua, que para mim era grego. Eu me limitava a encolher os ombros. Finalmente descobrimos do outro lado da rua uma porta entreaberta e embarafustamos por ela, casa a dentro. Era uma pequena loja de ferragens, atrás de cujo balcão encontramos um velho tranqüilo e sorridente, que nos recebeu com a maior afabilidade. Como não falasse inglês nem francês, chamou o filho, outro homem de boa vontade, que nos ajudou a descobrir o número do telefone da casa do embaixador brasileiro. Dentro de poucos segundos tive Mendes Vianna na outra extremidade do fio. Contei-lhe de nossa situação e perorei: "Embaixador, tenho a honra de requerer asilo político à Embaixada do Brasil!". — "Que é que vocês andam fazendo na rua a esta hora da noite?" — indagou o nosso amigo, numa zanga metade brincalhona e metade séria. — "Convidei-os para virem jantar comigo mas vocês alegaram que estavam cansados e iam para o hotel..." — Retorqui: "Está bem, mas o Governo brasileiro nos concede asilo ou não?". Mendes Vianna respondeu: "Venham passar a noite aqui. Mas não posso mandar o meu carro buscá-los. As ruas que desembocam na Praça Omonia estão todas bloqueadas pela Polícia".
Que fazer? Com o auxílio do homem da casa de ferragens, depois de muitas tentativas frustradas, conseguimos que um chofer de táxi nos levasse por vias tortuosas até à residência do embaixador.
Fomos recebidos com vaias cordiais. Mendes Vianna emprestou-me um de seus pijamas, que não posso afirmar me tenha assentado como uma luva, pois meu anfitrião tinha exatamente o dobro do meu peso.
No dia seguinte, à hora do café matinal, ficamos sabendo por um diário ateniense que se publica em língua inglesa, que o saldo dos choques da véspera, sem contar os edifícios danificados, fora de quase duzentos feridos, entre estudantes, populares e policiais.
À noitinha Mafalda e eu embarcamos no iate que nos levaria, através do Egeu, com paradas em Creta, Rodes, Delos, Míconos e Éfeso, até Istambul. A excursão duraria sete dias e sete noites. Descobri que, em matéria de recursos médicos, não existia a bordo nem sequer um veterinário.

8

Debruçado na amurada do barco, o Stella Maris, compus uma quadra com nomes de ilhas pertencentes aos arquipélagos das Espórades, das Cidades e do Helesponto.

Leros, Samos. Lesbos, Kassos
Tinos, Delos, Naxos, Milos
Thira, Rodes, Siros, Thassos
Hydra, Poves, Andros, Lilos

Shelley tinha razão: o Egeu é o mais belo mar do mundo. O sol brilhava e uma brisa fria soprava das bandas da Ásia Menor. Eu não me cansava de observar os jogos de cor e luz daquele mar mágico. Quantos tons de azul e verde? Impossível dizer, pois eram matizes fugazes — o verde-esmeralda transformava-se num abrir e fechar de olhos em verde-musgo ou jade; insituáveis reflexos violáceos dum segundo para outro ganhavam uma tonalidade de ametista ou turquesa. Se eu não tivesse tanto pudor de certas figuras de linguagem, diria que o Egeu é feito de pedras preciosas liquefeitas. (Tudo se perdoa a um turista.)
Ao anoitecer, um deus invisível — Dionísio talvez — mandou esvaziar sobre o mar milhões de ânforas de vinho tinto.


9

No dia seguinte desembarcamos em Creta. Aqui nasceu Nikos Kazantzakis. Quem ler o seu admirável Zorba, o Grego terá uma idéia do caráter e das paixões dos cretenses: homens geralmente altos e fortes, amigos da vida, dos prazeres da mesa e da cama, exímios dançarinos e cantadores, criaturas capazes das maiores generosidades e das mais bárbaras violências. (Em muitos traços psicológicos parecidos com os sicilianos.)
Visitamos o rico museu de Heráclion, a capital da ilha, e depois vamos até ao Palácio de Cnossos para examinar os vestígios de uma das mais antigas civilizações do mundo. O guia turístico nos afirma que foi aqui que Teseu entrou no labirinto construído por Dédalo, matou o Minotauro e conseguiu voltar para o ar livre graças ao fio de sua amada Ariadne.
O Stella Maris levanta âncora ao anoitecer. No dia seguinte pela manhã atracamos no cais de Rodes, cidade murada, capital da mais importante das ilhas do arquipélago das Espórades. Penso no romancista Lawrence Durrell — ilhômano confesso — que adora esta ilha de tão turbulenta história, que no passado foi dominada pelos romanos, assediada por persas e turcos, ocupada por venezianos e genoveses e que no século VI serviu de entreposto para os templários da ordem de São João de Jerusalém que por aqui passavam rumo da Terra Santa.
Disse Luciano de Samosata que Rodes é "bela como o Sol". Cícero, Júlio César, Augusto e Tibério (outro ilhômano) estudaram Filosofia e Retórica com os sábios desta ilha.
Encontro na arquitetura de Rodes, nas suas mesquitas de esguios minaretes, nos seus palácios, ruas e praças vestígios de todos os seus conquistadores. Tenho, entretanto, a impressão de que predomina aqui uma atmosfera bizantina.


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Ao anoitecer voltamos ao Stella Maris, que viaja toda a noite por entre estas muitas ilhotas da costa da Turquia para atracar no porto de Kusadasi, na costa da Ásia Menor. Um ônibus, que me lembra os piores que fazem o serviço suburbano de Porto Alegre, nos leva a Éfeso, onde — supõe-se — viveu por algum tempo Maria, a mãe de Jesus. Nosso guia nos mostra o lugar onde São João escreveu parte de seu Evangelho. Visitamos as ruínas do templo de Diana, as da biblioteca de Celso e as do anfiteatro onde o bravo Saulo fez o seu famoso discurso que tanto feriu o sentimento religioso dos efésios como prejudicou os interesses comerciais dos fabricantes de ídolos. (Resultado: São Paulo foi posto na cadeia, o que nos prova que o mundo não tem mudado muito dos tempos bíblicos para cá.)
O Stella Maris passou sereno pelo estreito dos Dardanelos, cruzou o mar de Mármara e entrou no Bósforo, dando expressão concreta a nomes que eram meros sinais na geografia da minha infância. Desembarcamos em Istambul, a Velha Constantinopla, num dia cinzento. Visitamos meio às carreiras a Hagia Sofia, a Mesquita Azul, a de Solimão, o Museu Arqueológico, o Grande Bazar, a cidade antiga e a nova; temos um vislumbre do Corno de Ouro e um "deslumbre" do Topkapi, e à noite somos levados a um cabaré que nos oferece um variado show, que termina com uma dança do ventre executada por uma bailarina jovem, bastante bonita de corpo e cara. Fiquei a olhar fascinado para seu inquieto umbigo, pensando em que havia pouco mais de um ano eu estava em perigo de vida, dentro duma tenda de oxigênio. "Mas se essa dança se prolonga por mais tempo" — cochicho ao ouvido de minha mulher — "terei que recorrer à trinitrina..."
No caminho de volta ao Pireu, aportamos na ilha de Delos, que, segundo a mitologia, Poseidon fez surgir das águas, apoiada em colunas de diamantes. Foi aqui que Latme, fecundada por Zeus, deu à luz Apoio e Ártemis, no alto do monte de Cintos, que avisto ao saltar do pequeno bote que nos trouxe do Stella Maris até este território sagrado.
O verde destas suaves colinas é desbotado e tenro. Encontramos no chão, onde brotam cardos, papoulas e flores de camomila, um enorme torso de mármore branco, resto duma estátua arcaica de Apoio. Nesta ilha-santuário existiu outrora uma importante cidade dominada por uma esplanada onde se alinhavam estátuas de esbeltos leões. Examinamos o que resta desses belos monumentos. É curioso: os leões de Delos parecem, na sua simplicidade de linhas, na sua fuga ao verismo, esculturas modernas, quero dizer, de nossos dias. Vejo sentado diante de seu cavalete um artista de barbas ruivas e chapéu de palha na cabeça, parodiando voluntária ou involuntariamente Van Gogh. Aproximo-me dele e vejo que está reproduzindo na tela as figuras dos leões arcaicos. Não posso compreender como foi que o homem viu esses tons violáceos que estão no seu quadro, mas não consigo perceber na paisagem. Fotografo em cores a esplanada, do ângulo do pintor, sem saber que mais tarde, revelada a fotografia, iria encontrar nela, graças a um erro que cometi ao graduar a abertura da lente, os misteriosos tons de violeta que os olhos ou a imaginação do pintor haviam descoberto na atmosfera de Delos...


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Chegamos em meio da tarde a Míconos, uma das ilhas mais encantadoras do Egeu. É pequena e tem apenas uma cidade, de casinhas cúbicas e brancas, imaculadamente limpas, e centenas de pequenas igrejas. Suas ruas são estreitas, sinuosas, de pavimento caiado, e nelas nos perdemos agradavelmente como num labirinto de brinquedo. Que placidez, a deste lugar! É uma pena que já tenha sido descoberto pelo smart set internacional, que começa a visitá-lo no verão. Dentro de mais alguns anos Míconos terá perdido a sua pureza secular, o seu rústico encanto.
Nas tabernas e cafés à beira do mar homens de caras curtidas de sol e vento, provavelmente pescadores, bebem ouzo, comem calamar frito, chupam laranjas, tomam café turco... E um pelicano, personagem já famosa nas crônicas turísticas, passeia solitário ao longo do cais.
Deixamos Míconos ao anoitecer, à luz dum crepúsculo fantasticamente vermelho.
Em junho estávamos de volta aos Estados Unidos e à casa dos Jaffe. Edward nasceu em agosto. Fisicamente era uma réplica de Mike.
Sentíamos saudade do Brasil, de nossos amigos, de nossa casa, mas doía-nos a idéia de deixar para trás aquela metade de nossa família. Afeiçoávamo-nos cada vez mais ao nosso genro, que é um homem admirável.
Fosse como fosse, marcamos a data de nosso regresso à pátria para dali a dois meses. Passei esse tempo a ler livros sobre a Grécia e a pôr em ordem as minhas memórias desse país luminoso, com a intenção de um dia escrever um pequeno livro turístico sobre essa viagem. (Seria pretensioso, ridículo mesmo, tentar um ensaio erudito e interpretativo sobre a Grécia Antiga.)
Foi no quintal dos Jaffe, ao som dos netos e à sombra de arvores, numa quente tarde daquele verão americano que, acompanhando com o olhar o dourado vôo duma abelha, ocorreu-me o título para o livreco: Sol e Mel. É que eu vinha deslumbrado com o sol daquele país e compreendia que ninguém melhor que o grego, tanto o antigo como o moderno, sabia tirar da vida todo o seu mel e saboreá-lo cantando e dançando, sem remorsos... Mas o livro não foi nem será escrito.



CAPÍTULO III

ENTRA O SENHOR EMBAIXADOR


1

Em outubro voltamos para o Brasil. Na nossa ausência Luís Fernando deixara Porto Alegre para tentar ganhar a vida no Rio. Encontramo-lo nesta última cidade —- pareceu-nos — menos casmurro, mais seguro de si e cheio de projetos para o futuro.
Coisa singular: é muito mais fácil a gente escrever sobre acontecimentos dum passado remoto do que sobre os mais recentes. O tempo como que faz as vezes de filtro, coando impurezas, ao mesmo tempo que nos dá uma mais nítida perspectiva do mundo, dos fatos e de nós mesmos.
Havia muito que eu andava a fazer, digamos assim, "exercícios espirituais" para me habituar à idéia de que a minha mãe um dia teria de morrer. Depois de março de 1961 passei a dizer a mim mesmo: "Pois quase não desapareceste antes dela?".
Em meados de 1963 D. Bega começou a sentir-se mal. O Dr. Franklin Veríssimo, que sempre tratara dela com a maior dedicação e carinho, descobriu, auscultando-a, de que algo havia de anormal em seu pulmão. Mandou-a fazer uma radiografia de tórax que confirmou seu diagnóstico.
Não vejo razão para entrar agora em pormenores para mim dolorosos, além de desinteressantes para o leitor. Minha mãe foi hospitalizada em agosto de 1963. Câncer do pulmão. Aos setenta e oito anos, D. Bega conservava, nos olhos de pupilas vivas e escuras, uma extraordinária juventude, em contraste com o rosto marcado, de expressão habitualmente tristonha. Eram esses olhos que eu agora via postos em mim, naquele quarto de hospital, numa espécie de muda e medrosa interrogação. Minha mãe jamais procurou saber do que sofria. Seu pavor ao câncer fora sempre tão grande que ela temia pronunciar essa palavra, substituindo-a peia expressão "aquela doença". Ao pé de seu leito, no hospital, eu lhe perguntava freqüentemente se sentia alguma dor. Ela respondia que não. Tinha algum pedido especial a me fazer? Sacudia negativamente a cabeça. E seus olhos miravam meu irmão e a mim com uma expressão de temor e ao mesmo tempo de resignado fatalismo.
D. Bega nunca tora católica praticante. Não costumava ir à missa aos domingos e raramente entrava em igrejas. Tinha, porém, uma grande devoção por Santa Rita de Cássia. Na manhã em que as irmãs do hospital perceberam que seu fim se aproximava, sugeriram-lhe que se confessasse e que comungasse, o que ela fez. No dia 12 de outubro daquele mesmo ano, por volta do meio-dia, minutos depois que meu irmão e eu deixamos o seu quarto, D. Bega morreu com a discrição e a dignidade com que sempre tinha vivido.


2

Recebemos no fim daquele ano um surpreendente telegrama, em que Luís Fernando nos comunicava que havia contratado casamento e que oportunamente nos daria pormenores a respeito da noiva e do acontecimento. Mafalda e eu nos entreolhamos e tivemos o mesmo pensamento. Quem seria a eleita? Homem um tanto tímido e, como o pai, um pouco inclinado à inércia e ao não-vale-a-pena, não se teria ele deixado levar pela simples preguiça de dizer não a alguém?
Nossos temores, porém, eram injustificados Viemos a saber mais tarde que nem a moça suspeitava das intenções daquele bicho de concha. Chamava-se Lúcia Helena. Trabalhavam ambos no mesmo escritório. Um dia nosso filho chamou-a (contou-nos a nora mais tarde) e ela imaginou que fosse para passar-lhe um pito por causa de algum trabalho malfeito. Luís Fernando disse-lhe apenas: "Vamos sair''. Ganharam a rua, caminharam algumas quadras em silêncio, fizeram alto à frente da vitrina duma casa de jóias e, apontando para uma coleção de alianças, o rapaz perguntou à colega: "Estás vendo aquele anel ali? Te dou cinco minutos para resolver. Queres ou não casar comigo?". Lúcia aproveitou apenas uns quatro ou cinco segundos, dos trezentos que Luís Fernando lhe concedera, e respondeu: "Quero". Deram-se os braços, entraram num botequim e beberam uma Coca-Cola para comemorar o acontecimento.
Casaram-se em março de 1964. A essa altura Mafalda e eu estávamos apaixonados pela noiva. O diabo do rapaz soubera escolher bem. A menina não só era bonita como também inteligente, simpática e de grande firmeza de caráter.
À hora da cerimônia, na igreja de N. S.a do Bom Sucesso, eu já pensava nos netos que o casal nos poderia dar.

3

Numa tarde de janeiro de 1963, estava eu no pequeno escritório que tenho no porão da minha casa, e a que chamo "o subterrâneo da liberdade", pois lá nenhuma arrumadeira, ninguém tem o direito de mexer em qualquer livro ou papel — quando decidi começar o livro sobre a viagem à Grécia. Sentei-me numa poltrona e entrei a folhear os muitos cadernos que eu enchera de notas quando ainda nos Estados Unidos. Ora, não existe arma mais perigosa na mão dum homem como eu do que um lápis ou uma caneta. Eu tinha naquele momento uma esferográfica que riscava, indócil, uma folha de papel em branco. Comecei a ler as notas gregas. Não consegui, porém, concentrar a atenção no texto daqueles cadernos cheios de desenhos: o perfil dum sacerdote ortodoxo, um esboço rápido da cidade de Rodes, vista do Stella Maris; um dos leões de Delos... Minha mão distraída começou então a mover a caneta sobre o papel e, sem idéia conscientemente preconcebida, tracei a face dum homem de aspecto indiático, sob um chapéu gelo. Lembrei-me então duma tarde, em 1954, no saguão do Hotel Tamanaco, em Caracas, durante a Conferência de Ministros do Exterior da Organização dos Estados Americanos. Estava eu sentado ao lado dum compatriota, a "olhar as caras" e a fazer comentários tipicamente brasileiros sobre os que passavam, quando vimos sair dum elevador um homem de estatura meã, robusto, a tez acobreada, os malares salientes, os olhos oblíquos, vestido como para um casamento ou batizado: chapéu de diplomata, gravata cinzenta, jaquetão de mescla, calças listradas, sapatos de verniz... Meu amigo murmurou: "Aposto como esse índio comprou essa roupa nova especialmente para a Conferência". Sacudi a cabeça, sorrindo, e não pensei mais no assunto. No entanto, agora, ali no meu porão, nove anos mais tarde, a cena e a figura do desconhecido me voltavam à mente. Por baixo do desenho escrevi: O Senhor Embaixador. Ali estava um assunto para romance! Quantas vezes, durante a minha estada em Washington me assaltara a idéia de escrever uma estória em tomo dum embaixador latino-americano junto à Casa Branca e à OEA? Sempre, porém, que tentava elaborar um plano para o romance, tolhia-me a impressão de que a "fruta" estava ainda verde. Agora, entretanto, sentia que o Tempo a tinha feito amadurecer e, por artimanhas do "computador", ma oferecia graciosamente, mas exigindo o sacrifício do livro sobre a Grécia.
Atirei para um lado os cadernos de notas e comecei a estudar graficamente as possibilidades da nova idéia. Quando dei acordo de mim, tinham-se passado quatro horas e eu já havia esboçado o plano para o romance.
A figura central da estória seria o embaixador dum país imaginário, mas real, da zona do mar das Caraíbas. Ocorreu-me o nome do herói: Gabriel Heliodoro Alvarado. Eu via mentalmente o sujeito: logo ele existia. E o país?
Passei várias semanas estudando diversas regiões da América Central e do Caribe — fauna, flora, história, geologia — para poder criar no meu espírito, com verdade, a minha república. O primeiro nome que me ocorreu para ela foi o de Nova Granada, que repeli por ter existido uma região assim chamada nos tempos coloniais dê. América Espanhola. Aceitei a segunda sugestão do inconsciente: Sacramento. Apanhei um mapa da América Central e das Antilhas e desenhei nele a minha ilha, com seus acidentes geográficos e suas cidades e zonas: a caliente, a templada e a fria.
Dediquei depois uma semana inteira à invenção duma História, dum passado para a República dei Sacramento, o que muito me divertiu.


4

Ao cabo de dois meses, estava de posse dum país em cuja existência eu já acreditava sem a menor sombra de dúvida, o que me tomaria talvez possível fazer que os leitores também lhe aceitassem a realidade.
Ao mesmo tempo em que fizera todas aquelas leituras e projetos, eu não cessara de pensar na parte mais importante do romance: as figuras humanas. Elas foram surgindo aos poucos, e eu me ia tornando íntimo delas — mais de umas que de outras, como sempre.
Algumas de início proporcionaram-me surpresas. O Dr. Molina, que imaginei um tipo ridículo, acabou por transformar-se numa personagem patética. Gabriel Heliodoro — percebi logo — era um parente remoto dos Cambarás, extraviado numa ilha do Mar das Antilhas.
Mas... qual era o propósito do livro? Bom, O Senhor Embaixador me oferecia a oportunidade de estudar a estrutura política, econômica e social dessas republiquetas da América Central e do Sul e suas relações com o irmão maior e mais rico, os Estados Unidos. O romance se prestaria também para mexer com um problema que sempre me preocupou: a participação do intelectual na política militante e, mais especificamente, numa revolução de caráter violento. E — por que não confessar? — havia além disso tudo o simples gosto de jogar com vários destinos, ver o que ia acontecer no momento em que — preparado o cenário — eu lançasse todas aquelas personagens em cena.
Emprestei a essas figuras fictícias várias de minhas doenças, gostos e hábitos. Ao Dr. Jorge Molina leguei a minha discopatia degenerativa. A Rosália, a minha vagotonia. A Pablo Ortega e ao Dr. Leonardo Gris, minha afeição pela música barroca. Ao pai de Pablo, o meu enfarte. Ao mísero Pancho Vivanco, a minha mania de lidar com lápis e artigos de escritório, bem como o vezo df? pensar ou resolver problemas ao mesmo tempo em que rabisco desenhos figurativos ou abstratos.
Decidi que O Senhor Embaixador devia ser um livro tão franco e desinibido quanto me fosse possível fazê-lo. (Mais tarde, Wilson Martins havia de chamar-lhe com muita propriedade "romance catártico".) Como sempre, estava decidido a dar a mais ampla liberdade às minhas criaturas, embora esperasse que sua eventual rebeldia não acabasse por prejudicar meus objetivos primordiais.
A narrativa devia ser direta, objetiva. A estória começaria não com qualquer das personagens centrais, mas com William Godkin, um ex-correspondente, na América Latina, duma agência de notícias americana de minha invenção, a Amalgamated Press, da qual possuo, naturalmente, o controle acionário.
Escrevi e reescrevi o primeiro capítulo umas quinze vezes. Com o passar do tempo, o que a princípio parecia oferecer-se como uma simples comédia satírica de costumes diplomáticos se foi transformando numa coisa séria — a despeito de certos aspectos caricaturais que, em muitos casos, estavam mais na natureza das personagens do que propriamente na disposição do autor.
Compus trechos desse romance em 1963, com muitas interrupções. Dediquei-lhe a melhor e maior parto de 1964. Contando os seus capítulos reescritos, as páginas que continham sugestões — aproveitadas ou não — e os trechos que foram eliminados, os originais atingiram um total de 900 folhas datilografadas em espaço triplo. Reduzi-as a 600 páginas, que corresponderam às 400 do livro impresso.
Em princípio de 1965 Lúcia e Luís Fernando nos deram uma neta, Fernanda. Mafalda e eu fomos ao Rio para conhecê-la. Vi um pouco das feições do velho Sebastião Veríssimo na face carnuda e redonda do bebê e isso me enterneceu.
O Senhor Embaixador foi publicado em fins de julho desse mesmo ano. Em agosto Mafalda e eu de novo rumamos para os Estados Unidos, isto é, para a casa dos Jaffe.


CAPÍTULO IV

MUNDO VELHO SEM PORTEIRA!

1

Estas memórias ficariam injustificavelmente incompletas se nelas eu não narrasse, ainda que de modo breve, as andanças em que me tenho largado pelo mundo na companhia de minha mulher e de meus fantasmas particulares. Desde criança fui possuído pelo demônio das viagens. Essa encantada curiosidade de conhecer alheias terras e povos visitou-me repetidamente a mocidade e a idade madura. Mesmo agora, quando já diviso a brumosa porta da casa dos setenta, um convite à viagem tem ainda o poder de incendiar-me a fantasia.
Na minha opinião, existem duas categorias principais de viajantes: os que viajam para fugir e os que viajam para buscar. Considero-me membro deste último grupo, embora em 1943, como já contei no primeiro tomo destas memórias, nauseado pelo ranço fascista de nosso Estado Novo, eu tenha fugido com toda a família do Brasil para os Estados Unidos, onde permanecemos dois anos. Devo entretanto esclarecer que, mesmo durante esse tempo de fugitivo, jamais deixei de ser um buscador.
O que pretendo fazer agora é — usando o verissimocolor, película de baixo custo — apresentar ao leitor por assim dizer alguns diapositivos e filmes verbais dos lugares por onde passamos e das pessoas que encontramos, tudo assim à maneira impressionista, e sem rigorosa ordem cronológica.
Usei como título deste capítulo dedicado a minhas viagens uma expressão popular que suponho de origem gauchesca. Tenho-a ouvido desde menino, da boca de velhos parentes e amigos, de tropeiros, peões de estância, índios vagos, gente da rua... Minha própria mãe empregava-a com freqüência e costumava pontuá-la com um fundo suspiro de queixa. As pessoas em geral pareciam usar essa frase para descrever um mundo que se lhes afigurava não só incomensurável como também misterioso, absurdo, sem pé nem cabeça... Desconfio, entretanto, que na sua origem essa exclamação manifestava apenas a certeza popular de que Deus fizera o mundo sem nenhuma porteira a fim de que nele não houvesse divisões e diferenças entre países e povos — gente rica e gente pobre, fartos e famintos, uns com terra demais, outros sem terra nenhuma. Em suma, o que o Velho queria mesmo era um mundo que fosse de todo mundo. É neste sentido positivo que desejo seja interpretada a frase que encabeça esta divisão do presente volume.
Quem me lê poderá objetar que basta a gente passar os olhos pelo jornal desta manhã para verificar que o mundo nunca teve tantas e tão dramáticas porteiras como em nossos dias... As próprias páginas deste livro bem poderiam ser uma confirmação dessa idéia. Mas que importa? Um dia as porteiras hão de cair, ou alguém as derrubará. "Para erguer outras ainda mais terríveis" — replicará o leitor cético. Ora, amigo, precisamos ter na vida um mínimo de otimismo e esperança para poder ir até ao fim da picada. Você não concorda? Oh mundo velho sem porteira!


2

Na segunda semana de fevereiro de 1959 minha mulher, meu filho e eu embarcamos no Rio de Janeiro, rumo de Lisboa, num transatlântico italiano, o Federico C. Cometi o erro de comprar acomodações de primeira classe — bastante caras — sem saber que a segunda, conforme verifiquei desde o primeiro dia de viagem, oferecia essencialmente o mesmo conforto. Como ambas encontram-se em boa parte no mesmo nível do barco, freqüentemente eu passava sem perceber da primeira para a segunda. A fauna desta última era muito mais numerosa, variada e pitoresca que a da principal, onde seríamos pouco mais de trinta tristes passageiros — tristes com exceção de dois: Paulo e Nina. O menino teria seus robustos três anos e era filho do casal Nair e Paulo P. Vidal, este um jovem diplomata brasileiro que estava a caminho de Genebra, onde ia reassumir seu posto de secretário da delegação brasileira. Nina — cinco ou seis anos — era a filha seródia de Georg Friedrich Murat Rosen, embaixador da República Federal da Alemanha no Uruguai, e que, já no fim de sua carreira, retornava a Bonn. Nina — cabelos de linho, um azul de água-marinha nos olhos — era viva, gregária, loquaz e falava com fluência, além do alemão, o inglês, o francês e o espanhol, este último idioma com forte sotaque teutônico. Tornou-se logo a figura mais popular não só da primeira classe como também da segunda, na qual freqüentemente se infiltrava.
Ilustra o salão de festas da classe superior um mural de Compigli em cores esbranquiçadas, pintado um pouco ao modo etrusco: prostitutas às janelas de seus quartos em bordéis do porto de Gênova. O capitão deste bravo piròscafo confessa-nos seu horror à pintura moderna e não compreende por que sua companhia pagou cinqüenta mil dólares por questa roba orribile.
É neste salão que os passageiros em geral se reúnem à hora do aperitivo, pouco antes do jantar, ao som dum trio — piano, violoncelo e violino — que executa nostálgicas músicas de café-concerto.
No refeitório reina um clima de primavera com intermitentes arrepios de inverno. Uns poucos cavalheiros vestem smoking mas a maioria deles limita-se às roupas escuras. Suas mulheres exibem vestidos longos e algumas estão refulgentes de jóias. Olho em torno e calculo que a média de idade entre os passageiros da primeira classe deve ser de cinqüenta anos. Esses viajantes de aspecto próspero devem ser homens de negócio aposentados, banqueiros e capitães de indústria talvez ainda em atividade: em suma, gente rica. Que está fazendo no meio deles um escritor brasileiro que vive da renda de seus livros — dez por cento sobre o preço de venda de cada exemplar — e que não possui nenhum bem imóvel além duma casa hipotecada?
Mafalda felicita-se porque até agora não se sentiu mareada, como temia. É que os giroscópios do Federico C cumprem com eficiência a sua função estabilizadora. Luís Fernando satisfaz suas curiosidades e apetites gastronômicos. O cardápio é enorme e nele me perco como num labirinto cujo minotauro fosse o fantasma invisível do colesterol. Ao fim dum jantar, quando o maître prende fogo nos espíritos que derramou sobre o creppe-suzette que encomendamos, chamas verdes, azuis e amarelas tingem-lhe a face longa, dando-lhe a aparência dum mágico ou dum benigno satanás.


3

Pela manhã e à tarde a piscina enche-se de banhistas e adoradores do sol. Intriga-me um homem que vejo sempre sozinho: estatura mediana, retaco, pele clara, ventre bojudo, desses que a caricatura costuma atribuir aos capitalistas, peito e braços musculosos, nos quais azulam tatuagens. Tem uma cara honesta de camponês. Dino, o garçom do bar da piscina, me informa que o solitário é um dos dois correios diplomáticos da embaixada soviética em Buenos Aires que se acham a bordo.
Nunca são vistos juntos. Enquanto um deles vai para a piscina o outro permanece na cabina, talvez montando guarda aos documentos que levam para Moscou. Ambos fazem as refeições juntos, no próprio camarote.
Há dias que venho observando as manobras de Nina para conquistar a amizade do funcionário soviético. Este no entanto conserva-se indiferente e mudo. A menina tenta comunicar-se com ele em todas as línguas que sabe. O diplomata não move os lábios, nem sequer para sorrir. "Como te Ilamas, hombre?" — pergunta-lhe a pequena certa manhã, pondo na palavra hombre mais erres do que ela necessita. O hombre continua calado. Hoje enrolou uma toalha em torno da cabeça, o que lhe dá o ar dum califa de pele alva e cabelos louros. Um avião passa alto por cima do navio, Nina ergue os olhos e os braços para o céu e exclama: "Mirrá!" O russo mira mas cala.
No dia seguinte, porém, muito cedo o gordo pombo-correio comunista e a menina são as únicas pessoas que vejo à beira da piscina. (Sergei Dodonov não percebe que eu o espio semi-escondido, de dentro do bar.) Nina volta à carga e o cidadão soviético evita-a como pode, mas ao cabo de alguns minutos de negaceios entrega sua Stalingrado particular à pequena atacante: murmura algo, não sei em que língua, ao mesmo tempo que passa de leve seus dedos, grossos como bananas, pelos cabelos da filha do embaixador alemão. Nina põe-se a pular e a gritar: "El hombre habla! El hombre habla!" E deita a correr pela parte rasa da piscina, dando pontapés na água e produzindo borrifos que o sol transforma em breves jóias.
Ergo-me e vou debruçar-me à amurada para contemplar o mar à luz da manhã. Ouço com a memória a voz de João Raymundo recitando um verso de Verhaeren:
// fait dimanche sur Ia mer!


4

Os dias passam. Sigo inescapavelmente a rotina de bordo. Depois do café da manhã, longas caminhadas ao redor do promenade deck. Faço-as em geral sozinho ou na companhia silenciosa de meu filho ou então na de Paulo Vidal. Com este último recordo com saudade um querido amigo que deixamos em Washington, Maury Gurgel Valente; membro também do serviço diplomático brasileiro. "Você já imaginou, Paulo, quando o nosso Maury chegar a embaixador, com aquele seu aspecto eternamente menineiro, as suas deliciosas distrações e o seu descaso pelo protocolo?" E Paulo: "Mas vai ser um embaixador muito eficiente, disso tenho certeza". Eu também tinha, e como! E ambos estávamos certos — posso acrescentar, passadas quase duas décadas.
Pouco antes do jantar, na sala do mural de Compigli, Mafalda e eu conversamos com os pais de Nina e com Gerhard Wolf, que conhecemos em Porto Alegre, onde ele foi recentemente cônsul da República Federal da Alemanha. Como já atingiu a idade da aposentadoria, Herr Wolf volta para Bonn. Os músicos executam o seu repertório, ao qual naturalmente não podem faltar a Suite de l'Arlesienne, os Contos dos Bosques Vienenses e a Dança das Horas...
Depois do jantar, costumamos tomar um delicioso café expresso no bar. Às nove assistimos a uma sessão de cinema. Sentimo-nos frustrados porque só nos mostram filmes americanos dublados em italiano. Não deixa de ser cômico ver-se e ouvir-se um ator com cara de pau como John Wayne, que mal move os lábios finos quando se exprime em sua própria língua, "falar" um idioma musical e exuberante como o italiano. (Diz meu filho que, como ator, Wayne tem apenas duas expressões faciais: com e sem chapéu.)
Freqüentes vezes, sentados nas preguiçosas do convés,
Mafalda e eu discutimos a nossa estratégia para a "campanha de Portugal", onde teremos de fazer manobras sutis para não aceitar favores oficiais, seja de que natureza forem, pois ambos detestamos o regime salazarista.
Na festa com que os passageiros celebram a passagem pela unha do equador, pede-me o diretor social de bordo que eu faça o papel de Netuno. Recuso. Insistem. Reluto. Ma lei non há spirito umoristico? Acabo capitulando. Afinal de contas — concluo — quem viaja não deve perder oportunidades de ser de vez em quando "outra pessoa", livrando-se da tirania dos "outros", que já o ficharam e classificaram definitivamente. Exemplo: 'O Veríssimo é um sujeito sisudo, incapaz disto e daquilo, principalmente daquilo".
Chegada a hora da festa, põem-me na cabeça uma coroa de papelão e no rosto colam-me bigodes e barbas brancas de algodão. O espelho mostra-me um índio velho brasileiro, cacique não sei de que perdida tribo. Levo a comédia até ao fim. A "cerimônia" realiza-se na piscina. Tenho de fazer uma pequena alocução em italiano. No momento de coroar com uma grinalda de flores de papel a jovem governanta de Nina, que foi eleita miss não me lembro que, beijo-lhe ambas as faces coradas. Em suma, divirto-me com a farsa, mas não tanto quanto Mafalda e Luís Fernando, que não podem conter o riso quando me vêem sentado num trono improvisado à beira da piscina, com um tridente de plástico na mão.


5

No dia 18 de fevereiro, por volta das quatro da tarde, nosso piròscafo faz uma escala em Las Palmas, capital duma das principais ilhas do arquipélago das Canárias. Cidade limpa de clima ameno, dona de certa graça para a qual contribuem as cores da suas muitas buganvílias. Descemos para a terra e já no cais somos assaltados por um bando de raparigas que exibem os consabidos "trajos típicos" — isca para turistas. Estão munidas de pequenos cestos com flores. Urna delas aproxima-se de mim, prega-me uma flor na lapela e arranca-me um dólar. Quer fazer o mesmo ao turista francês que nos acompanha, mas sua madame intervém, rude, dando à moça apenas uma moeda de vinte e cinco centavos de dólar. "Voilà!" O marido sussurra sorrindo: "Cest le charme des tropiques". Alugamos um Studebaker, cujo chofer, Sebastian, nos informa com orgulho que seu carro tem 33 anos de idade. Por uma estrada estreita e perigosa, somos levados pelo valente calhambeque até ao pico dum vulcão extinto, de onde se tem uma vista panorâmica não só da cidade como de toda a ilha. A natureza, com a cumplicidade do tempo, entupiu a cratera, de sorte que a uns duzentos metros abaixo de onde estamos, em vez dum atro abismo que talvez nos pudesse levar ao centro da terra, vemos um plácido vale, dum vivo verde veludoso, com algumas árvores, umas poucas casinholas e uma plantação de bananeiras. Ao entardecer o Federico C faz-se de novo ao mar, e nos dias que seguem vamos passando do verão para o inverno. A temperatura cai, os azuis e verdes do céu e das águas transformam-se em nevoentas tonalidades de cinza, e as nuvens às vezes assumem a cor da ostra. O sol, quando não se esconde, mostra-nos uma pálida face de convalescente. Estamos entrando na cauda, quero dizer, no último mês do inverno europeu. A piscina de bordo é esvaziada e coberta por urna rede feita de grossas cordas. Vejo menos gente a passear pelos conveses. Uma vez que outra me animo a enfrentar o mau tempo e faço uma ou duas voltas no promenade deck.
Cinco da tarde, já quase noite no Atlântico. Na sala de leitura confortavelmente aquecida, finjo ler a revista italiana
que acabo de apanhar de cima duma mesa. Na realidade observo disfarçadamente o cavalheiro que está sentado numa poltrona, a pequena distância. Tem um livro fechado nas mãos, os olhos entrecerrados, como em devaneio. É Herr Gerhard Wolf. Quantos dos que me lêem conhecem a extraordinária estória desse diplomata alemão? Poucos, suponho. Pois ali está o homem que salvou Florença da destruição. Sem sua corajosa e oportuna intervenção talvez o David de Miguel Ângelo, a igreja de Santa Maria dei Fiore, a Galeria degli Uffizi, com sua riquíssima pinacoteca, assim como outras inestimáveis obras de arte da histórica cidade italiana estivessem hoje reduzidas a escombros.
Quando Adolf Hitler tomou o poder na Alemanha, o jovem Gerhard Wolf era apenas um simples terceiro-secretário de embaixada. Como homem civilizado, via com apreensão os crescentes delírios paranóicos do Führer. Chegou, porém, desgraçadamente a hora em que todos os membros do corpo diplomático do Terceiro Reich foram obrigados a inscrever-se no Partido Nacional-Socialista, sob pena de serem não só demitidos como também processados e possivelmente internados em campos de concentração. Gerhard Wolf não teve outro remédio senão tornar-se um nazista, pelo menos exteriormente. O fato de passar a maior parte do seu tempo fora da Alemanha tornava-lhe decerto menos penoso subir o seu calvário com a cruz gamada às costas.
Durante os últimos anos da Segunda Grande Guerra era ele cônsul-geral da Alemanha nazista em Florença, cidade que não só admirava como também amava. O chefe de polícia florentino, um homem de maus bofes, que se chamava ironicamente Caritas, perseguia com encarniçamento não só os judeus como também os antifascistas italianos, denunciando-os à Gestapo. Herr Gerhard Wolf intervinha, quando possível burocraticamente, mas na maioria dos casos clandestinamente para dar asilo ou fuga aos perseguidos, salvando assim centenas deles do tiro na nuca, dos campos de concentração, dos trabalhos forçados e das câmaras de asfixia. Nessas manobras corria grandes riscos pessoais, que se agravaram quando em 1943 Mussolini foi derrubado do governo italiano e o exército alemão encarregou-se da defesa da parte da Itália ainda em poder dos fascistas. O cônsul Wolf, então com redobrada cautela, prosseguiu na sua missão salvadora. Quando as tropas aliadas aproximaram-se de Florença e o general nazista que comandava a praça preparou-se para defender a cidade até o último soldado, Gerhard Wolf conseguiu a duras penas convencê-lo de que isso seria uma loucura, pois essa resistência significaria na certa a destruição de uma das mais valiosas cidades-museus do mundo. O general, porém, já tinha começado a fazer ir pelos ares algumas pontes do rio Amo... Herr Wolf jogou então a sua última e mais perigosa cartada — pois podia ser fuzilado por traidor da pátria ou, no mínimo, destituído de seu cargo por derrotista — enfrentou novamente o general e tratou de fazer que ele poupasse il Ponte Vecchio. Discutiu com o militar com tanta veemência e tamanha paixão, que o nazista acabou concordando não só em poupar a mais bela ponte florentina como também em retirar suas forças da região... Assim, quando os aliados entraram em Florença, encontraram-na intacta, com todos os seus tesouros de arte.
Preso pelos aliados, e mais tarde processado e julgado, Herr Gerhard Wolf teve tantos e inequívocos depoimentos a seu favor, da parte não só de pessoas cujas vidas ele salvara, como também de outras que conheciam suas atividades antinazistas, que não só foi unanimemente absolvido como também integrado no serviço diplomático da República Federal Alemã — e mais tarde mandado a ocupar postos no estrangeiro.
Florença deu-lhe um título de cidadão honorário. Alguém (ignoro o nome do autor) reduziu sua estória a uma peça de rádio intitulada O Anjo de Florença. Um dia, pouco depois de eu haver conhecido pessoalmente Gerhard Wolf, tive a ocasião de ler sua biografia, O Cônsul de Florença, da autoria de David Tutaev.
Nas poucas vezes em que encontrei socialmente em Porto Alegre esse homem admirável, conversamos — como tem acontecido agora a bordo do Federico C — sobre viagens, livros e escritores, pintura e pintores, escultura e escultores, a divisão da Alemanha, o futuro da Europa... Jamais esse cavalheiro de cabelos grisalhos, sorriso suave e um pouco triste, fez qualquer referência à sua odisséia florentina. E agora, no fim de sua carreira, volta ele para Bonn, para a aposentadoria e possivelmente para o olvido.
A revista que tenho nas mãos, enquanto observo o cônsul — percebo agora — está de ponta-cabeça. Herr Wolf desperta de seu devaneio, ergue-se, sai na direção da porta da sala de leitura e detém-se a meu lado. Levanto-me, apertamo-nos as mãos, quero dizer-lhe da grande admiração, respeito e mesmo gratidão que tenho por ele... Mas como entrar no assunto? Sai-me então da boca uma frase cretina: — "Estamos quase no fim da viagem, não?" Herr Wolf sorri: "Sim, para o senhor e sua família, que descem em Lisboa, mas não para minha senhora e eu, que seguimos até Gênova, onde tornaremos um ônibus para o interior da Itália. Antes de regressar a Bonn, queremos visitar uma cidade que nos é especialmente cara. Bom, com sua licença..." Torna a apertar-me a mão e se vai. Até hoje tenho atravessadas na garganta as palavras que não consegui dizer ao bravo cônsul alemão que salvou Florença — e que jamais tornarei a encontrar, porque Gerhard Wolf morreu em Munique, poucos anos após esse nosso último encontro a bordo do Federico C.


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PORTUGAL: 1959

Gaivotas que imagino lusitanas (ou será o mar a pátria de todas as gaivotas?) organizaram-se numa espécie de comitê de recepção e acompanharam nosso barco, sobrevoando-o festivamente aos guinchos, desde o oceano até ao porto de Lisboa, ao longo do Tejo.
Clara e suave, com algo de aquarela e presepe, a cidade nos espera nesta fria manhã de fim de inverno, sob um céu tão azul e límpido que seria uma insensatez procurar adjetivos raros para qualificá-lo.
Meu editor Antônio de Souza Pinto e o Eng. Jorge de Sena esperam-nos no cais, em companhia de outras pessoas que — debruçado na amurada do navio — tento mas não consigo identificar. Desembarcamos. Mal ponho os pés em solo português, sinto-me filho nativo desta terra. Pudera! Aqui estão minhas remotas raízes, daqui partiu há cento e cinqüenta anos um de meus antepassados, para a aventura brasileira. Estou em casa.
Souza Pinto é um homem de meia-idade, altura um pouco acima da mediana, as faces rosadas e carnudas; veste-se com uma elegância britânica e fuma cachimbo. Jorge de Sena é todo um professor, por dentro e por fora. Conheço-lhe os excelentes poemas e ensaios. Tem e merece a reputação de ser homem duma integridade moral e intelectual a toda prova. À primeira vista me parece um tanto retraído e silencioso. Abomina, como eu, o regime salazarista. Estou certo de que vamos entender-nos bem.
Cercam-nos repórteres de jornais lisboetas. Um deles pergunta: "É a primeira vez que V. Ex.a visita nossa terra?" Respondo: "Não sei.,.. Tenho a impressão de que já estive aqui... não me lembro quando. Talvez numa outra vida". Curioso: a impressão do déjà vu haveria de acompanhar-me durante quase todo o tempo que passaríamos em Portugal.
No automóvel de meu editor, a caminho do Hotel Tivoli, pergunto por Álvaro Lins, o nosso admirável crítico literário, que agora exerce as funções de embaixador do Brasil em Portugal. A resposta que Jorge de Sena me dá é exatamente a que eu esperava. O fato de Lins ter concedido asilo em sua embaixada ao Gen. Humberto Delgado, um dos líderes da oposição portuguesa, irritou o governo de Oliveira Salazar, criando uma crise diplomática séria, que nosso compatriota enfrenta com bravura e dignidade.
Naquele mesmo dia, às cinco da tarde, Souza Pinto reuniu, num dos salões de sua casa editora, grande grupo de escritores portugueses, para que eu tivesse a oportunidade de conhecê-los pessoalmente. Lá estavam figuras que eu admirava e estimava. Alguns daqueles homens haviam já sido hóspedes forçados das prisões da P.I.D.E., a abjeta polícia política de Salazar.
Ao primeiro contato com esses companheiros senti os efeitos da torva atmosfera repressiva criada por um governo de Direita que, através duma censura implacável e estúpida, procurava por assim dizer emascular o pensamento liberal, a literatura e as artes em Portugal.
Doía-me ver um dos povos mais ternos e hospitaleiros do mundo dominado por um regime político fascista. Isso me criava um problema que examinei de muitos ângulos com minha mulher e meu filho. Diante daquela situação, como deveria eu proceder? Fingir que não percebia nada — prisões arbitrárias, terror policial, censura férrea — portando-me como o "perfeito cavalheiro" que, ao entrar em casa alheia, deixa seu espírito crítico do lado de fora e sorri polidamente para os donos da mansão, aceitando seus vinhos, chás, bolinhos, presentes e homenagens? Ou, ao contrário, ser absolutamente franco nas conferências que ia fazer, nos colóquios que ia entreter com estudantes, e nas entrevistas que ia dar à imprensa, fazendo as mais claras manifestações de meus princípios liberais e humanistas? Um escritor português, meu conhecido e partidário do salazarismo, já andava a rondar-me, sugerindo-me fizesse uma visita de cortesia ao Sr. Secretário de Informação. Acenava-me com facilidades para viajar por conta do seu governo através de todo o país... aonde eu quisesse. "Não tem o meu camarada curiosidade de conhecer nossas Províncias d'Além-Mar? Pode-se arranjar isso lindamente." Tratei de despistar o solícito governista: "É melhor deixar esses assuntos para mais tarde..." Mas o homem insistia: "Ó Veríssimo, não lhe custa nada fazer uma visitinha de cinco minutos ao Sr. Secretário. É uma pessoa simpaticíssima".
Não fiz. Já tínhamos decidido que para nós só havia um caminho decente a seguir. Ia ser embaraçoso? Paciência.


7

Dois dias depois de nossa chegada a Lisboa, minha mulher e eu recebemos do embaixador Álvaro Lins e de sua senhora uma homenagem que muito nos sensibilizou. Neste ponto prefiro dar a palavra ao anfitrião, citando um trecho de seu livro Missão em Portugal (Editora Civilização Brasileira, Rio, 1960).

Lisboa, 21 de fevereiro de 1959
Cocktail ao Érico e Mafalda aqui na Embaixada. Durante uns quarenta minutos estivemos, Heloísa e eu, na entrada do salão, recebendo os convidados, pois foram mais de 300! Compareceu tudo o que Lisboa tem de melhor em sua vida literária, em sua vida artística, em sua vida cultural. Em edição de fim de tarde, e no conhecimento da lista dos convidados, o "Diário de Notícias" comentava que raramente, em quaisquer salões de Embaixadas, se teria visto aqui uma recepção de tais proporções, tanto pelo número como pela qualidade, conjuntamente, dos convidados.
Ao mesmo tempo, porém, já fui informado de que, em certos meios mais extremamente fascistas do situacionismo começam a surgir murmurações por causa do grande número de intelectuais da Oposição, sobretudo da esquerda, convidados e presentes à recepção. Feito por alguém que também conhecia a lista de convidados, já se encontra circulando, neste sentido, um papel anônimo e mimeografado (...) Dada a condição exclusivamente literária de Érico Veríssimo, adotei o critério de não convidar nenhuma personalidade que fosse exclusivamente política, quer da Situação, quer da Oposição. Todos os convidados são membros da Sociedade Portuguesa de Escritores. Ou diretores e chefes de redação de todos os jornais de Lisboa. Ora, quanto aos diretores de jornais, a quase totalidade deles é de salazaristas. E nenhum deixou de ser convidado. Agora, quanto aos escritores e professores, aos intelectuais que constituem a vida cultural portuguesa, a culpa não é minha ao constatar-se que, em trezentos de uma lista, duzentos e noventa são democratas e anti-salazaristas; e que apenas uns dez oscilam entre a neutralidade tímida e o apoio encabulado ao governo ditatorial.

Foi um acontecimento para nós inesquecível essa festa na embaixada cio Brasil. Quando em companhia de minha mulher e na de nosso filho cheguei à porta do saião de festas, resplendente de luzes e já fervilhante de convidados, o embaixador e a embaixatriz vieram a nosso encontro. Apertei a mão a ambos. Heloísa — morena, bonita, face voluntariosa de nordestina — estava muito elegante no seu longo vestido escuro. Beijou Mafalda e levou-a na direção dum grupo de senhoras. Álvaro Lins segurou-me pelo braço e fez-me dar os primeiros passos no salão. Procurei afivelar uma das minhas canhestras máscaras mundanas. Inútil. Senti, cheguei a ver a expressão bisonha de meu rosto. Nunca me sinto completamente à vontade em reuniões sociais, palcos, plataformas e lugares públicos nos quais por qualquer motivo minha pessoa seja o centro das atenções. Não estou tentando insinuar que me considero uma flor de modéstia. Nada disso! Tenho até uma certa ojeriza por palavras como modéstia e humildade, pois ambas — e muitas outras desse tipo — me parecem na maioria dos casos disfarces verbais para um tipo de vaidade mais complexo do que o comum.
Mal havia eu dado o terceiro passo no salão, a memória me mandou à consciência, numa síntese que durou apenas uma fração de segundo, toda uma estória que só poderei narrar em muitas linhas. Aqui vai.
O Cel. Quincas Bicalho era, lá pelos mil e novecentos e vinte e poucos, o chefe político absoluto de Santa Margarida, vilarejo não mui distante de minha cidade natal. Caboclo bonachão, pitoresco contador de "causos", era também conhecido por sua vaidade, por sua paixão por ser homenageado, festejado, condecorado, em suma: "aperciado"... Tinha a obsessão do prestígio pessoal, da popularidade.
Sempre que visitava Cruz Alta, costumava telegrafar a seus correligionários republicanos: "Chegarei amanhã trem meio-dia. Avise companheiros. Abraços. Bicalho". Para ele o importante era ter muita gente a esperá-lo na "gare da estação", como dizia.
Por ocasião de uma dessas visitas, o nosso coronel chegou no trem do meio-dia e teve a mais deslumbrada alegria de sua vida ao ver a plataforma da estação cruz-altense repleta de autoridades civis e militares, e de muito povo. Além do intendente municipal lá estava toda a oficialidade da guarnição federal, com seu comandante à frente, de espada à cinta, medalhas no peito, talabarte lustroso, grande uniforme... Mal o trem parou, a banda de música do 8.° Regimento de Infantaria rompeu a tocar um vibrante dobrado. O Cel. Bicalho saltou do trem, com os beiços arregaçados num sorriso que lhe ia de orelha a orelha. E — baixote, pele tostada de sol, pernas arqueadas, roupa preta e colarinho duro com gravata de elástico — lá se foi ele direito ao comandante da guarnição e, ao abraçá-lo com entusiasmo, quase lhe arrancou as condecorações. "Mas que honra, general!" — exclamou — "Muitíssimas grácias!" Chamou aos peitos o intendente, num amplexo de velho companheiro de campanhas e patifarias eróticas e eleitorais, e depois saiu a distribuir apertos de mão entre os outros oficiais e, como bom político, não deixou de acenar efusivamente para a multidão em torno.
A todas essas não notava a expressão de estranheza ou espanto em todas aquelas faces, tanto nas dos civis como nas dos militares. Por fim um amigo chamou-o à parte e disse-lhe ao ouvido: "O compadre está equivocado... Esta recepção não é pra vosmecê, mas pra S. Ex.a o Ministro da Guerra, que viaja neste mesmo trem".
O senhor de Santa Margarida, encalistrado, deixou cair a beiçarra e ficou olhando para o luzido grupo das autoridades e demais pessoas gradas que se afastava, rumo do vagão de luxo do comboio.
Quincas Bicalho não tardou a recuperar o bom-humor. Soltou uma risadinha e exclamou: "Que bruta rata, compadre!"
Para o rapazote que eu era então, esse fato valeu como uma espécie de parábola exemplar. Aprendi uma boa lição e prometi a mim mesmo, não necessariamente em palavras claras, jamais proceder na vida como o Cel. Bicalho.


8

No entanto parece fora de dúvida que esta recepção é mesmo para os Veríssimo. Álvaro Lins começa as apresentações. Aperto a mão de cavalheiros corretamente vestidos, alguns deles com a roseta duma comenda na lapela. Às vezes julgo sentir uma certa invejinha de pessoas assim bem-falantes, atenciosas, amáveis, — desses tipos extrovertidos que sabem demonstrar de maneira convincente, em palavras, gestos e expressões faciais toda a sua cordialidade, mesmo quando falsa.
Tenho a impressão de estar num bosque — não perdido, como o Joãozinho e a Ritinha da fábula, pois tenho em Álvaro Lins um guia seguro — um bosque de árvores móveis dotadas de fisionomia, voz, gestos... Alguns galhos e ramos me en-
volvem em cálidos abraços, que nada têm de vegetal, pois é de bom sangue humano e quente a seiva destas generosas plantas. Cobrem-me com suas folhas e flores, oferecem-me os frutos de sua prodigalidade. Já tenho os braços cheios deles: são tantos que os deixo cair. "Sou leitor de V. Ex.a desde o seu primeiro livro!" — "Até que um dia o meu querido amigo decidiu fazer uma visitinha a este nosso Portugal pequenino..." — "Mas onde está Mme Veríssimo? Quero conhecê-la." — "Já pedi ao Souza Pinto que não deixe de levá-los a Évora!" — "V. Ex.a não pode ir-se de Lisboa sem jantar em minha casa." — "E na minha também, ora e essa!" Cruzam o bosque ágeis elfos de luvas brancas carregando sobre a mão espalmada bandejas com cálices e copos cheios de bebidas em vários tons de âmbar, ouro velho e novo, rubi e topázio. Tempera o ar uma fragrância de extratos de Paris, de uísque da Escócia e de vinhos da generosa terra portuguesa. Bandejas surgem súbitas no ,meu campo de visão, cheias de canapés, torradinhas barradas de caviar ou patê, finas fatias rosadas de salmão defumado, empadinhas, azeitonas... "Não, obrigado! Mais tarde!" (Meus tabus alimentares dariam um longo capítulo, que por pudor não pretendo jamais escrever.) Percorro lentamente uma afetuosa estrada de abraços — apenas de raro em raro uma apresentação formal: uma curvatura, um sorriso, um aperto de mão, um nome indistintamente murmurado.
Um senhor corpulento está agora à minha frente e me contempla com uma ternura de tio. É Nuno Simões, um dos mais antigos e cordiais amigos que o Brasil tem em Portugal. Apertamo-nos as mãos, abraçamo-nos. Pergunta-me por Moysés Vellinho. Quer notícias do Rio Grande do Sul. Comove-me a expressão de bondade que vejo nos olhos deste velho humanista e homem de imprensa.
Abre-se uma breve clareira no bosque. Vislumbro D. Maria Carlota, esposa de meu editor — dama duma simpatia e duma simplicidade cativantes — no momento em que ela apresenta Mafalda a uma senhora vestida de veludo negro. Sinto-me tranqüilo ao avistar minha escudeira. Estou certo de que ela está tão feliz quanto eu, mas, diferente do marido, sabe exprimir de modo espontâneo sua felicidade. A dama de negro deve ter-lhe contado uma estória espirituosa, pois lá está minha mulher a soltar sua franca risada.
Acerco-me dum rijo e alto carvalho, uma das árvores mais imponentes desta e de qualquer outra floresta de Portugal. É Jaime Cortesão, historiador e ensaísta por quem tenho a maior admiração e estima. Vamos um ao encontro do outro e abraçamo-nos longamente. "Ó homem!" — exclama ele. — "Até que um dia nos encontramos!" Falo-lhe em sua filha Saudade, casada com o nosso poeta Murilo Mendes; conto-lhe da afetuosa admiração que temos por ambos, e de nossa intenção de procurá-los quando visitarmos Roma, onde o casal reside. Aos setenta e cinco anos, alto, vigoroso, desempenado, Cortesão é um belo tipo, de pêra e bigodes longos e grisalhos. Parece um Quixote, mas um Quixote lúcido, incapaz de confundir moinhos de vento com gigantes, pois este homem de pensamento e ação sabe muito bem quais são os inimigos de Portugal e combate-os com bravura. Mais de uma vez teve de emigrar por causa de perseguições políticas. Tanto ele como Antônio Sérgio, a quem aperto a mão a seguir, já foram presos pelos esbirros de Salazar Contemporâneo e amigo fraternal de Cortesão, Antônio Sérgio é também um humanista. Quando jovem escreveu um estudo sobre a obra de Antero de Quental. Sua preocupação desde a mocidade até hoje tem. sido a de reformar Portugal, tanto no terreno da economia como no da educação e do comportamento cívico. Tenho a seguir o privilégio de conhecer a Sra. Antônio Sérgio, que aqui está a seu lado. (Sempre tive uma certa pena das esposas de homens de letras, inclusive e talvez principalmente da minha.)
Um fotógrafo esgueira-se por entre as "árvores" e vai tirando instantâneos aqui e ali, e o clarão de seu flash reforça por um átimo a luz desta já mui clara floresta. Apanha-me no momento em que converso com Câmara Reis, diretor da prestigiosa revista Seara Nova. Nosso assunto: Paulo Duarte, sim, o brasileiro Paulo Duarte, o bravo campeão dos direitos do homem, o leal amigo, a quem ambos admiramos e estimamos; e Juanita, sua incomparável companheira, entra na conversa, envolta também em nosso afeto e nossa saudade.
Um relâmpago diante de meus olhos. Sou fotografado ao lado dum desconhecido sorridente que me abraça, perguntando: "Lembra-se de mim? Lembra-se de mim?" E agora, José? Claro que esta fisionomia não me é estranha... mas como se chamará o homem? What’s in a name? — pergunta em Verona a suave Julieta de Shakespeare, que não foi convidada para a recepção.
Quem me salva por acaso da situação embaraçosa é Sofia de Melo Breyner, uma mulher esbelta, alourada e bonita, que vem a meu encontro. Em Portugal é hábito em certas camadas sociais beijar a mão às damas. Não consigo forçar-me agora a esse gesto, pois sinto que em mim ele seria postiço. Além do mais sei que estou sendo vigiado por um sujeito malicioso que me persegue com seu olho crítico e mordaz: eu próprio. Limito-me a apertar a longa mão de esquisito desenho e dizer: "Gostei muito de seu Mar Novo". Por um largo instante fico a conversar com esta criatura agudamente sensível, considerada hoje pela crítica um dos mais importantes poetas de Portugal.
Aos poucos, explorando a floresta, parando aqui e ali ao pé duma árvore, vou encontrando escritores portugueses que conheço de leitura e retrato. De repente exclamo com genuína satisfação: "Ferreira de Castro!" E ele, sorridente, de braços abertos: "Veríssimo!" É um encontro que há muito tenho desejado. Moreno, estatura meã, robusto, à primeira vista este beirão do litoral dá uma impressão de sisudez e incomunicabilidade. Sei que passou sua adolescência de homem pobre na Amazônia, e dessa experiência resultou um livro, A Selva (1930), que é talvez o melhor romance que se escreveu até hoje sobre aquela região brasileira. Trata não só das agruras da selva como também da exploração de que eram vítimas os trabalhadores brasileiros dos seringais. Seu romance Emigrantes, publicado em 1928, mostra as dificuldades e humilhações dos portugueses pobres que então emigravam para o Brasil. Ferreira de Castro me pergunta agora se é verdade que esses dois livros o tornaram malvisto e malquerido no meu país. "Ó homem" — respondo — "acho que isso é puro boato. Afinal de contas você nada mais fez que escrever a verdade. E como escreveu bem!" Este bravo romancista, que tanta intimidade tem com a vida, a dura vida dos desprotegidos, é considerado o precursor do romance neo-realista em Portugal. Por alguns instantes conversamos sobre um escritor que ambos admiramos e queremos: Jorge Amado.
Estou recordando essa festa na embaixada do Brasil quinze anos após sua realização, ajudado pela memória consciente — colaboradora prestimosa mas limitada — e pela inconsciente — informante rica mas imprevisível e caprichosa — e também por muitas das fotografias que guardo daquela noite, e que tenho agora a meu lado enquanto escrevo. Numa delas vejo-me sentado numa poltrona diante de dois homens, um alto e vestido de escuro; outro baixo e trajado de claro. Tenho a mão direita pousada num dos ombros deste último. Lembro-me exatamente das palavras que nesse exato momento eu lhe dirigia: "Ó Manuel da Fonseca, será que somos parentes? Tenho também o apelido de Fonseca". Ele sorri: "Pois, homem, quem sabe? Tudo é possível".
Manuel da Fonseca, contista e romancista, pode ser enquadrado também no grupo do neo-realismo. É um excelente prosador. Li dele Seara de Vento (1958). O amigo que está a seu lado é o poeta Armindo Rodrigues, autor, entre outros livros, de Dez Odes ao Tejo.
Souza Pinto vem solícito ao meu encontro: quer saber como me sinto. Respondo: "Muito bem. Otimamente" — o que não é verdade. Membro da sensível confraria dos vagotônicos, estou já sentindo o que costumo sentir em ocasiões como esta em que sou muito solicitado a falar, a voltar-me dum lado para outro, a prestar atenção a tudo quanto me dizem. É um permanente formigamento — ou calafrio? — que me percorre o corpo, do couro cabeludo à sola dos pés. A cabeça, se não me dói realmente de maneira lancinante ou rombuda, está pelo menos dolorida. Sinto uma espécie de cansaço estonteado, de mistura com uma certa excitação, como se tivesse tomado uma boa dose duma droga estimulante. Os membros, o corpo inteiro amolentados me dão a impressão de que acabo de ser espancado — mas de dentro para fora. Socialmente considero-me um fracasso. Mas isso não me preocupa.


9

Souza Pinto enche de fumo seu cachimbo, e pela mente deste leitor de Simenon passa uma frase: Maigret bourra sa pipe. Meu editor afasta-se rumo de outro setor do salão. E neste momento exato avisto Victorino Nemésio e vou cumprimentá-lo. Eis uma das grandes figuras literárias de Portugal. Seu romance Mau Tempo no Canal é considerado um dos três maiores romances que a literatura lusa produziu neste século. Victorino Nemésio, homem de formação universitária, .tem visitado freqüentemente o Brasil. Pergunta-me por um brasileiro que ambos admiramos e prezamos. "Como está o Augusto Meyer?" Respondo a verdade de Deus: "O Meyer nunca está. Não é deste mundo, mas de um outro, muito particular, do qual só ele possui a chave e o mapa".
Cumprimento a seguir Joel Serrão, ensaísta, historiador e professor de grande mérito. Mais tarde, ao saudar Forjaz Trigueiros, pergunto-lhe, entre outras coisas, por que decidiu abandonar a ficção pelo ensaio. Sento-me depois ao lado do crítico João Gaspar Simões — que não é sorridente nem expansivo — e digo-lhe do quanto gostei de seu ensaio biográfico sobre Eça de Queirós. Ele me mostra com um sinal discreto a figura dum homem magro de meia-idade que se encontra no meio do salão, com o ar de quem está perdido, e diz: "Sabe que aquele ali é o filho de Eça de Queirós?" Por alguns instantes ficamos a comentar os mistérios da hereditariedade.
Repito que não tenho voz apropriada para reuniões sociais e muito menos para conferências. Para me fazer claramente ouvido num salão como este, tenho de vencer a cortina de ruído que me cerca — vozes, risos, rumor de passos e pratos, tinir de cristais, arrastar de cadeiras... Minha voz, além de fraca, é opaca, sem metal nem impostação. Empalidece e some-se em ambientes festivos. Sinto já a garganta irritada, a boca e os lábios secos. Passa um garçom com uma bandeja cheia de copos. Faço-lhe um sinal, ele estaca a meu lado e — mísero puritano — apanho um copo com água mineral, e dele bebo um gole largo. (Vejo com a memória a figura de meu pai, que me fita sorrindo e sacudindo a cabeça, penalizado. Õ Sebastião Veríssimo! — exclamo em pensamentos. — Quem devia estar aqui no meu lugar eras tu. Não há justiça no mundo!) Ainda tenho na mão meu copo quando sou apresentado a Fernando Namora, homem ainda jovem e muito afável. Mal trocamos as primeiras palavras, tenho a intuição de que poderei facilmente ser amigo deste romancista. Talvez por causa de sua tez morena e do seu não sei que de mouro, tenho a impressão de que deve ser natural do Algarve. No entanto veio de Condeixa, do centro do país. Além de excelentes romances como O Trigo e o joio e Fogo na Noite Escura, Namora tem de certo modo romanceado a sua rica experiência de médico. É um neo-realista não engajado em qualquer corrente política, embora seriamente preocupado com problemas de justiça social.
Alguém me apresenta a Alves Redol. Eis aqui um ficcionista politicamente coerente e bravamente político, homem de esquerda num país de duro regime direitista. Um tipo simpático e informal. Vejo-o com a lembrança, e a fotografia que tenho dele agora aqui à minha frente confirma a imagem que a memória guardou. Redol está beirando os cinqüenta anos, mas aparenta menos idade, apesar de todos os seus sofrimentos físicos impostos pelas muitas prisões e pelos implacáveis interrogatórios da P.I.D.E. Creio que este é o mais convicto dos neo-realistas portugueses, o romancista mais entranhadamente consciente dos problemas sociais de sua terra, e dos de outras. O último livro que produziu, A Barca dos Sete Lemes (1958), tem um dramático conteúdo político. Assim como no Brasil José Lins do Rego escreveu o Ciclo da Cana-de-Açúcar e Jorge Amado o do cacau, Redol romanceou em Portugal o do vinho do Porto.
Avisto Heloísa no exercício de suas funções de anfitriã. (Recuso usar o termo "anfitrioa" como recomendam os dicionários.) De quando em quando Álvaro vem saber se estou bem. Noto-lhe pela expressão fisionômica que está preocupado. Penso no seu "hóspede", o Gen. Humberto Delgado, que a esta hora encontra-se recolhido a seus aposentos, no andar superior, de onde decerto estará escutando, indócil, estes sons de vozes humanas e — homem extrovertido, gregário — deve estar ardendo por descer e confraternizar com os amigos e correligionários e, eventualmente — língua solta e brava — insultar alguns figurões do salazarismo aqui presentes. Nosso embaixador, porém, faz cumprir à risca as leis que regem o direito de asilo político, de sorte que não permite que o líder oposicionista desça ao salão de festas nem autoriza qualquer pessoa estranha ao serviço da embaixada a subir aos aposentos do general.
Converso por alguns instantes com Joaquim Paço d'Arcos, uma figura de aspecto racé, elegantemente trajado. Tem olhos claros, e fala com erres parisienses. Diplomata, membro duma família tradicional, escreveu seis importantes romances urbanos sob o título geral de Crônicas da Vida Lisboeta. (Semanas mais tarde Joaquim Paço d'Arcos e sua encantadora senhora nos ofereceriam um jantar muito cordial em sua bela mansão de Lisboa, cheia de objetos de arte.)
Pergunto-lhe por Miguel Torga. Paço d'Arcos responde que o autor de Os Bichos e Novos Contos da Montanha reside em Coimbra, onde exerce sua profissão de médico. Ao deixar meu fidalgo interlocutor faço uma descoberta que me surpreende e alegra. Vejo a um canto do salão, como que escondido, talvez numa tentativa de mimetismo defensivo, José Rodrigues Miguéis, que conheci em 1941 em Nova Iorque onde, exilado voluntário, ele dirigia o departamento de traduções da edição em língua portuguesa do Reader's Digest. Nesse primeiro encontro, achei-o sério, cordial e inteligente, mas só mais tarde descobri nesse homem franzino e retraído um romancista de real valor, preocupado com problemas psicológicos, e um seguro pintor, em três dimensões, de ambientes urbanos. Abraçamo-nos e por alguns instantes nos entregamos a uma espécie de diálogo da saudade, recordando camaradas comuns ausentes. Deixo Miguéis para me aproximar de uma das figuras mais respeitadas e admiradas da literatura de língua portuguesa: Aquilino Ribeiro. Um dia Jaime Cortesão referiu-se a ele como sendo "enorme e agreste". É assim que o sinto quando lhe aperto a mão. Aos setenta e quatro anos, mestre Aquilino, de estatura meã, robusto, face rosada, cabelos ainda abundantes e completamente brancos, tem algo (é claro que.o motivo principal desta impressão é o que li de sua obra e o que sei de sua vida) que me sugere a aspereza do cardo e a dureza da pedra. Este beirão, que pode ser considerado o decano das letras portuguesas, teve uma vida aventurosa de político militante. Quando muito jovem, foi preso depois da explosão da carga de dinamite que escondia em seu quarto. (É natural que algo desse dinamite aparecesse um dia de algum modo em sua forte e rica prosa.) Conseguindo escapar da prisão, Aquilino Ribeiro emigrou para Paris, onde escreveu o seu primeiro livro, o Jardim das Tormentas, e freqüentou o Quartier Latin. Voltou a Portugal em 1914 e no ano seguinte meteu-se num outro movimento revolucionário — o que resultou numa nova fuga para Paris, de onde regressou à pátria, para em 1928 envolver-se em mais um movimento sedicioso. Dedicando-se mais tarde à literatura, Aquilino se foi transformando num estilista pessoalíssimo, conhecedor profundo de seu idioma, de sua terra e de sua gente. Seu regionalismo tem sempre um interesse universal. A prosa deste mestre do conto e do romance freqüentemente me tem feito exclamar para mim mesmo: "Que diabo de língua rica, a portuguesa!" Aquilino não me parece, pelo menos nesta festa, um homem loquaz. Procuro um meio de dizer-lhe o quanto admiro sua integridade pessoal e suas qualidades de escritor. Não encontro. Por outro lado não lhe confesso que tive de consultar o dicionário muitas vezes, quando li, há pouco, o seu forte romance, Quando os Lobos Uivam. Lembro-me das páginas que mestre Aquilino escreveu à guisa de prefácio para esse livro. Elas nos dão uma idéia do homem que tenho agora à minha frente. O meu dia caminha para o ocaso. Dei bem conta quando cheguei ao fim deste trabalho... Todavia continuo a produzir como se me penetrasse um ardente e fecundo Verão. Obriga-me uma espécie de sina e fugir-lhe seria negar-me. Por isso hei de morrer com a enxada em punho.
Percorro agora longamente o setor feminino do salão, onde sou apresentado a várias prosadoras e poetas. Não lhes guardei os nomes mas sei que jamais lhes esquecerei os traços fisionômicos.
O vagotônico sente que se está aproximando do limite extremo da sua resistência física e psicológica, mas feliz, lânguida e extenuadamente gratificado. Quero exprimir o meu contentamento sorrindo, mas imagino a minha própria cara no momento em que tento manifestar esses sentimentos — e isso me desconcerta. Algo existe de errado nos meus músculos faciais que me torna difícil rir de maneira aberta, franca, natural. Sei que minha expressão fisionômica habitual dá uma idéia errônea de meu temperamento. Por causa de minha aparente sisudez muita gente imagina que sou um homem austero. Preciso "consertar" com a maior urgência esta face que herdei de minha mãe. (Ó Sebastião, onde estás que não me vens ajudar? Sei que terias facilmente as palavras, os gestos, os sorrisos, a simpatia com que eu poderia manifestar minha gratidão e minha afeição para com esta afetuosa gente portuguesa!)
Em terras lusas o tratamento de V. Ex.a é moeda corrente em várias camadas sociais. O tu, que nós gaúchos ainda usamos para os íntimos, é obviamente uma herança lusa ao mesmo tempo que uma influência platina. O você tem em Portugal sutis implicações de relacionamento que não ouso analisar. Gosto especialmente da maneira como os portugueses às vezes tratam o interlocutor como se ele fosse uma terceira pessoa ausente. Uma das convivas me pergunta, acentuando a segunda sílaba de meu nome de batismo: "O Érico Veríssimo pretende permanecer muitos dias em Portugal?" — "Tantos quanto nos for possível." E ela: "E o casal tenciona visitar também a Europa?" Protesto: "Mas Portugal está na Europa, minha senhora!" Ela sorri de maneira enigmática e pergunta: "O meu amigo tem certeza absoluta disso?"


10

Dias mais tarde recebi do Brasil, da parte de Maurício Rosenblatt, um bilhete acompanhado dum recorte do Correio do Povo de Porto Alegre, contendo uma curta notícia distribuída pela United Press International e na qual se informava que o "romancista brasileiro" se encontrava em Lisboa como hóspede oficial do Governo português. Essa inverdade me deixou irritado. Não sou homem de grandes explosões, mas de pequenas implosões. Telefonei imediatamente para a agência local da U.P.I., pedi à operadora que chamasse seu gerente. Quando o tive na outra extremidade da linha e ouvi o seu "Está lá?", identifiquei-me, minuciosamente, li em voz alta e tão clara quanto possível, a notícia do recorte, e acrescentei: "Exijo que essa agência desminta o mais cedo possível este comunicado. Não é verdade que eu esteja em Portugal como convidado do governo salazarista. Viajo por conta própria e neste país sou hóspede de meu editor Antônio de Souza Pinto. Jamais aceitei nem aceitarei qualquer favor dum governo totalitário". Meu invisível interlocutor murmurou apenas: "Pois pois..." Desliguei o telefone. Como uma agência de notícias da estatura da United Press International não pode enganar-se e muito menos admitir publicamente que cometeu um erro de informação, a maneira que o citado gerente encontrou para "restaurar a verdade" foi a de, no próximo comunicado que expediu para o Brasil a meu respeito, anunciar que "o escritor, que se encontra na Europa em viagem particular de recreio, pronunciará hoje à noite uma conferência pública no Teatro D. Maria II..."
Ora, essa conferência seria a minha primeira prova de fogo em Portugal.
O velho teatro está situado no Rossio. Muito antes da hora marcada para o início da palestra, a casa estava completamente tomada por um público que me pareceu um tanto excitado.
No fundo do palco aberto via-se uma longa mesa enfeitada de flores. (Ah! As famosas, formais, chatíssimas mesas das cerimônias públicas, às quais sentam-se as autoridades e as chamadas "pessoas gradas", a mesa fatal de onde partem monótonos e solenes discursos!)
Álvaro e Heloísa Lins entraram no teatro discretamente, quase às escondidas, para evitar os aplausos com que geralmente os membros da oposição portuguesa costumavam saudar, sempre que o viam, o embaixador que dava asilo ao Gen. Humberto Delgado, livrando-o das masmorras da P.I.D.E. (Lins queria evitar qualquer pretexto para tumultos durante minha conferência.) O casal esgueirou-se — e este é o verbo exato — para o camarote que lhe estava reservado. Descoberto por um dos setores das torrinhas, recebeu uma ruidosa ovação em meio da qual se ouviram exclamações como "Viva o Brasil! Viva a Liberdade! Viva a Democracia!" (Estávamos em 1959.) Álvaro Lins, entretanto, manteve-se impassível, sentado no fundo do camarote. Quando os patrocinadores da conferência foram convidá-lo para assumir a presidência da mesa, o embaixador brasileiro recusou aceitá-la, no que, a meu ver, procedeu com acerto.
A todas essas eu havia sido deixado sozinho nos bastidores, e caminhava dum lado para outro, esperando que algum contra-regra providencial me viesse empurrar para a cena. Um zumbido de casa de marimbondos assanhados, vindo principalmente das torrinhas e dos balcões, enchia o recinto. Por fim surgiu o administrador do teatro, um homem de grande simpatia pessoal, e acercou-se de mim. Notei que estava conturbado. "Encontramo-nos num impasse, Sr. V’rissimo" — disse ele. — "Vosso embaixador não quer presidir a mesa." — "Ótimo!" — exclamei. — "Assim não teremos mesa. Prefiro falar sem ninguém às minhas costas." O homem consultou seu relógio. "Nove horas passadas. Estamos já atrasados. O público está impaciente. O teatro parece-me um verdadeiro barril de pólvora. Por favor, meu amigo, não acenda nenhum fósforo. Compreende o que lhe estou pedindo?" Fiz com a cabeça um sinal afirmativo, mas não prometi nada.
Escondido atrás do pano de boca arrepanhado a um dos lados do palco, espiei a platéia, os balcões, os camarotes, as torrinhas. A coisa toda tinha o aspecto dum comício político. De pé nos corredores, entre os grupos de poltronas da platéia e ao longo das paredes, alinhavam-se soldados da polícia, no seu fardamento verde e cinza. De súbito a memória, às vezes uma grande galhofeira, me mandou à mente imagens de policiais de Lisboa tais como os mostravam caricaturalmente as revistas musicais que em idos tempos companhias teatrais portuguesas costumavam encenar no velho Coliseu, em Porto Alegre. (Mais tarde fiquei sabendo que existia uma delegacia de polícia permanentemente instalada no subsolo do teatro lisboeta.) Com o olhar procurei e encontrei Mafalda num dos camarotes, sentada ao lado de D. Maria Carlota.
O administrador da casa segurou-me o braço: "Que fazemos? Não sei quem pode apresentar V. Ex.a! É uma tarefa muito delicada em vista da situação... Quero evitar problemas..." — "Não se preocupe" — tranqüilizei-o. — "Eu mesmo me apresento. Não vejo neste teatro nem nesta cidade quem me possa conhecer há mais tempo do que eu mesmo..." O homem pareceu aliviado. "Pois bem, meu amigo. Pode iniciar a conferência. Vá com Deus!"
Entrei no palco e aproximei-me do proscênio. Achei exagerados os aplausos com que o público me recebeu. Afinal de contas eu não tinha feito ainda nenhuma acrobacia, nenhum número de prestidigitação ou telepatia. (Hoje, passados mais de três lustros, começo a desconfiar de que antes de entrar em cena eu já havia trocado mensagens telepáticas com boa parte daquele auditório.) Das galerias rompeu de repente um brado que me surpreendeu: "Viva Luís Carlos Prestes!" Uma voz gritada dos balcões rebateu: "Provocação! Provocação!" E começou o tumulto. Na platéia cabeças voltavam-se dum lado para outro, para trás, para o alto... Os policiais verdes movimentaram-se, parvos. Vivas, morras entrecruzavam-se na atmosfera cálida. No centro do palco vazio eu esperava, as mãos enfiadas nos bolsos, tomado duma calma de que eu mesmo me admirava. O velho coração portava-se bem, procurando tornar-se, pelo menos parodisticamente, digno das armas e dos barões assinalados, que da ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados, etc, etc.... Na platéia e em alguns camarotes cavalheiros de aspecto respeitável pediam calma com gestos e palavras. Vislumbrei a face entre assustada e divertida de minha mulher. A confusão durou no máximo dois ou três minutos, mas minutos de terremoto, desses que parecem horas. Por fim ergui os braços num sinal de quem pede paz ou se rende. O silêncio aos poucos se fez. Perguntei em voz alta: "Posso falar também?" Romperam risos em vários quadrantes do teatro. "Senhoras e senhores, espero que todos tenham desabafado, porque agora quem vai desabafar sou eu!" (Lembro-me ainda claramente da face rosada, redonda e gordalhufa do corpulento sargento da polícia que, de pé no corredor central da platéia, a poucos metros de onde eu me encontrava, contemplava-me com um sorriso e um olhar que me pareciam de humana ternura.)
Usando duma técnica já experimentada em várias conferências que fizera não só no Brasil como também nos Estados Unidos, inicialmente apliquei, por assim dizer, uma injeção sedativa no público, contando-lhe primeiro, em tom de conversa informal ao pé do fogo, fatos de minha vida, principalmente a "epopéia" da minha farmácia cruz-altense, meus desastres comerciais e mais tarde os literários... Ouviam-se risadas, a princípio tímidas, pois o povo português é geralmente cerimonioso e boa parte daquela gente que lotava o Teatro D. Maria II decerto esperava ouvir uma conferência acadêmica. Senti que aos poucos a tensão do público diminuía. Ao cabo duns dez minutos, se tanto, pareceu-me que todos estavam descontraídos, e já familiarizados com o conferencista. Bom, feita a sedação, iniciei a operação propriamente dita e, de bisturi metafórico em punho, comecei a cortar a carne dos governos totalitários, mostrando degenerescências, tumores e focos infecciosos: mentiras, contradições, violências, arbitrariedades, corrupções...
Ao fim da palestra convidei o público para estabelecer um diálogo comigo. Durante mais de meia hora respondi a perguntas dos mais variados tipos: óbvias, inteligentes, capciosas, inocentes ou provOcadoras do ponto de vista político... Notei que algumas pessoas tentavam evitar os assuntos proibidos pela Censura. Mas quem dirigiu o espetáculo foram os homens e mulheres que enchiam as torrinhas, de onde de vez em quando partiam na minha direção verdadeiros petardos que, ao explodirem no ar tenso, me davam ensejo para de novo malhar ditaduras e ditadores. (Tive o cuidado de esclarecer que sou contra todos os regimes totalitários, tanto os de Direita como os de Esquerda.)
A todas essas o robusto policial verde-cinza lá continuava firme no seu posto, sem afastar os olhos da minha pessoa. Notei-lhe no rosto uma expressão que me pareceu de afeto quase maternal.


11

Dias mais tarde, a Sociedade Portuguesa de Escritores ofereceu-nos um banquete, no velho castelo de São Jorge, que data do tempo dos visigodos e dos mouros, e que está plantado com suas pardas torres quadradas no topo da mais alta colina de Lisboa. Como era de esperar, fizeram-se inúmeros discursos, entre eles o de dois intelectuais partidários do salazarismo, ambos discretíssimos, sem qualquer conteúdo político. Saudou-me também Jaime Cortesão. Quando ele terminou de falar, abracei-o, batemos nossas taças e delas bebemos, num brinde a um futuro de liberdade política e justiça social para Portugal. Quando me deram a palavra, repisei alguns temas da conferência do Teatro D. Maria II, indo porém muito mais longe na minha crítica aos regimes autoritários. Visei então mais diretamente o governo português: só me faltou pronunciar claramente o nome de Oliveira Salazar. Apesar de no decurso do banquete eu ter bebido apenas água mineral, limitando-me a bicar como passarinho os vinhos servidos, portei-me como se estivesse embriagado. (Estou convencido de que certas palavras e principalmente certas idéias possuem alto teor alcoólico.) E o meu querido amigo Cortesão, sentado ao lado de Mafalda, de quando em quando lhe dizia ao ouvido: "As palavras de seu marido são champanha para meu espírito..." Seu rosto resplandecia.
Em suma, esse banquete, no qual tomaram parte mais de duzentas pessoas, transformou-se num animado comício poli-
tico. Diga-se a bem da verdade que uns dez por cento dos convivas não estavam de acordo com minhas idéias político-sociais. Em alguns era fácil perceber criptoliberais que, por um imperativo de sobrevivência, tinham de aceitar a tutela do governo e calar-se ante todos os seus abusos de poder. Entre eles descobri vários equilibristas habilíssimos que pareciam pedir, quase suplicar, a simpatia ou pelo menos a tolerância de seus colegas oposicionistas, ao mesmo tempo que temiam perder o calor e o favor oficiais. Confesso que tive pena desses patéticos acrobatas. Não lhes quis mal nem os desprezei. Foi-me mais natural compreendê-los e apiedar-me deles.
Na primeira tarde em que dei autógrafos numa das principais livrarias de Lisboa, formou-se — contaram-me depois — uma fila do comprimento de dois quarteirões. Meu editor, radiante, fumava seu cachimbo de tabaco aromático e cronometrava o meu trabalho. Ao cabo de meia hora sussurrou-me ao ouvido: "O meu amigo está autografando uma média de oito livros por minuto". Impossível! — pensei — pois eu escrevia em cada volume que me era apresentado, o nome completo de seu dono, e muitos havia que usavam, além do nome de batismo, três e até mesmo quatro apelidos de família. Além disso, eu quase sempre trocava algumas palavras com cada leitor ou leitora. A sessão durou mais de três horas. Interessou-me agudamente a variedade de gente que me apareceu com um, dois ou mais romances de minha autoria para serem autografados. Procurei saber a profissão de cada um. Verifiquei que passavam por mim pessoas de todas as idades, desde adolescentes até senhoras e senhores idosos. Desfilaram diante da mesa à qual eu estava sentado comerciários, estudantes, bancários, membros das profissões liberais, operários, datilógrafas, motoristas de táxi (lembro-me principalmente de um que me perguntou quanto devia pagar-me pelo autógrafo), militares, homens de negócio. Alguns me faziam perguntas comovedoras. "O Érico V’rissimo vai continuar a história da menina Clarissa?" — Um gordo cidadão de bela calva lustrosa queria saber se o Cap. Rodrigo Cambará existira na vida real ou era "um produto da imaginação de V. Ex.a".
Houve um momento em que me apareceu uma senhora já grisalha, de fisionomia simpática, elegantemente vestida. Quando lhe perguntei o nome, ela respondeu que era a baronesa de São Mamede. Estendeu-me a mão, que apertei, soerguendo-me da cadeira. Nunca em minha vida eu tinha autografado um livro para uma baronesa. A essa dama seguiram-se um funcionário público ainda na ativa e um outro aposentado, cujo nome era João Batista Cardoso Moreira de Azevedo e Cunha. Ufa!
Souza Pinto tocou-me de leve no ombro. "Já anoiteceu. Se está cansado, podemos deixar o resto para outro dia." Respondi que, enquanto houvesse um cristão naquela fila, eu ficaria. E de repente me veio, vagamente desconcertante, a impressão de que estivera todo aquele tempo a assinar cheques sem fundo, enganando aquela boa gente, e que por isso estava sendo procurado por essa espécie de Interpol que muitos de nós trazem dentro de si mesmos, e que nos persegue de modo implacável, como no meu caso particular. Possivelmente um desses agentes secretos agora me esperava à porta, para me algemar...
Houve, em outros dias, mais duas longas tardes de autógrafos, em diferentes livrarias. A uma delas compareceram uma filha e uma bisneta de Camilo Castelo Branco. À outra, a filha de Guerra Junqueiro, que trouxe para Mafalda uma braçada de gladíolos. E então eu vi e ouvi num relâmpago de memória meu pai recitando Os Simples no seu escritório de nossa perdida casa de Cruz Alta.


12

Nosso quarto no Tivoli estava sempre cheio de flores e cestos de frutas, além de outros presentes — em geral objetos de arte popular — enviados por leitores de nós desconhecidos. Era bastante grande a quantidade de cartas que me chegavam de várias localidades de Portugal. Numerosas eram também as visitas que recebíamos no hotel de representantes de associações literárias. A todas essas eu sentia uma canseira boa e agradecida. O vago-simpático às vezes me dava pequenos sustos, mas dum modo geral á saúde ia bem.
Luís Fernando saía por Lisboa em suas andanças solitárias, livre de quaisquer compromissos sociais. Mafalda mantinha-se firme a meu lado, e seus conselhos me foram muito úteis em várias instâncias daqueles dias passados em terras lusitanas. Com sua intuição feminina ela sabia farejar o "perigo", isto é, descobrir num convite ou sugestão de aparência inocente uma armadilha oficial para me envolver e comprometer, afastando-me da Oposição. O escritor português que insistia para que eu visitasse o Secretário de Informação continuava no seu assédio, aparecendo nos lugares e horas mais improváveis. Duma feita veio sentar-se à nossa mesa, no hotel, quando começávamos a tomar o café da manhã. Amável e melífluo como sempre — e o diabo do homem era insinuante! — repetiu a sugestão. "Meu caro" — respondi — "será que preciso dizer-lhe claramente por que não quero nada com o seu governo, nem com o de Franco ou o da União Soviética?" Ele se calou, contrafeito, e passados alguns segundos mudou de assunto.
Durante todos aqueles dias nosso agradável e fácil convívio com os Souza Pinto e com Jorge de Sena continuou. Tivemos a oportunidade de conhecer pessoalmente Mécia, a admirável Mécia, esposa de Jorge e mãe de seus numerosos filhos. Fizemos a melhor camaradagem com Antônio Luís, filho único dos Souza Pinto, um menino simpático e sensível, de seus doze anos, e ao qual Mafalda e eu logo nos afeiçoamos. Decidi um dia que já tínhamos o direito de nos considerar "amigos de infância". Ele aceitou a idéia. E é ainda assim que nos tratamos até hoje, passados quase dezesseis anos.
Na conferência que fiz na Universidade Clássica de Lisboa, a convite de sua faculdade de Medicina, fui apresentado ao público por um professor salazarista. O salão em forma de anfiteatro estava atopetado de estudantes. Iniciei a conferência mas tive de calar-me dentro do primeiro minuto por causa do ruído das vozes de protesto de pessoas que não tinham conseguido entrar no auditório, por falta de espaço.
Restabelecida a calma, falei sobre o Brasil, sua juventude, seu povo, seu futuro, a construção de Brasília e as perspectivas de desenvolvimento cultural e econômico que eu via para meu país. No diálogo que se seguiu à palestra, um jovem universitário me perguntou: "A que atribui V. Ex.a a presente crise da literatura portuguesa?" Respondi de imediato: "À Censura, meu filho. Sem liberdade não pode existir plena criação literária ou artística". Um outro estudante ergueu-se e objetou: "Mas que fazer quando um escritor não tem ética?" Repliquei: "Ora, mais tarde ou mais cedo ele se destruirá por suas próprias mãos". O rapaz voltou à carga: "Permita V. Ex.a que lhe diga que isso não me parece estar acontecendo no mundo em que vivemos. Os romances que mais se vendem hoje em dia, os famosos best sellers, são em geral pornográficos, negativistas, prejudiciais ao público em geral e à juventude em particular". Argumentei: "Está bem, meu amigo. Você propõe a censura como solução para controlar, digamos assim, a 'ética' de cada escritor... Mas diga-me uma coisa: quem é que vai controlar a 'ética' do governo ditatorial que exerce essa censura? Nem sempre ou, antes, quase nunca os mais capazes e decentes são os que tomam o poder, nos regimes de força. E preste atenção ao que lhe vou dizer. Prefiro que dois ou doze mil romancistas considerados sem ética por um governo de Direita ou Esquerda continuem a publicar livremente suas obras a ter de suportar esses regimes que atentam contra as liberdades civis, que se avocam o direito de pensar pelo povo e que, mantidos pelo terror policial, encorajam a delação e fazem vista grossa às torturas de presos políticos. Já leu o 1984 de George Orwell? Não? Pois leia. Leiam-no todos."
Inumeráveis foram os coquetéis e jantares com que nos homenagearam sociedades literárias e gente de imprensa em Lisboa. Nessas ocasiões os discursos eram sempre muitos. Não preciso repetir que não tenho o menor talento ou gosto oratório. Considero-me um tipo mais gráfico do que oral. Ao cabo de certo tempo todas as imagens, metáforas e adjetivos de meu pobre almoxarifado lingüístico que eu poderia usar com referência a Portugal, esgotaram-se. E em mais duma conjuntura fiquei na situação aflitiva dum sonho que tenho periodicamente, em que me vejo e ouço discursar sem dizer nada, quero calar-me e não consigo, fico a equilibrar-me à beira dum abismo, mais consciente do que nunca de problemas de sintaxe, estilo e semântica — mas sempre amparado pela esperança de que, seja como for, vou sair bem da enrascada...

13

Antes de iniciar as excursões maiores ao norte e ao sul de Portugal visitamos rapidamente os arredores de Lisboa com Souza Pinto e Jorge de Sena. O Estoril deixou-nos indiferentes. É sem a menor dúvida um belo e confortável balneário internacional para gente rica, refúgio e recreio de reis, príncipes e políticos — exilados ou não — mas simplesmente nada tinha a ver com o Portugal que Mafalda e eu buscávamos, talvez um tanto preconcebidamente.
A caminho de Sintra encontramos o Palácio de Queluz, tranqüilo e até um pouco tristonho em meio dum jardim de tipo francês, mas sem a menor pretensão a grandiosidade e esplendor. A construção do palácio data do século passado e — se bem sei interpretar a expressão fisionômica dos casarões solarengos -— este me parece um tanto encabulado de ser, ou melhor, de ter sido residência de monarcas e depois deixado ao olvido, a ponto de quase transformar-se em ruínas. E essa cabula permanente mostra-se na cor de suas paredes, pintadas dum rosa muito especial, nem desmaiado nem berrante, digamos, um esquisito rosa crepuscular.
Nosso carro estaca. Tenho a impressão de ouvir em surdina a voz do Palácio: — "Se estão com pressa, amigos, passem de largo. Não percam tempo comigo. Se procuram riquezas arquitetônicas ou História antiga, recomendo-lhes os conventos de Mafra, o da Batalha, o de Alcobaça... Não passo dum casarão hoje meio esquecido, que o governo usa de raro em raro para suas insípidas recepções... Mas se estão cansados da viagem e querem exercitar um pouco as pernas, desçam, entrem, sejam bem-vindos. Percorram minhas salas e salões, olhem meus móveis, pinturas, tapetes, relógios, relíquias e, usando a imaginação, conversem com meus fantasmas".
Deixamos o automóvel. Satura o ar da manhã um perfume de flores de laranjeira. Passeamos pelo jardim por entre verdes canteiros com flores para mim conhecidas e desconhecidas, estátuas tímidas e lagos artificiais com muros de azulejos e fundo de lápis-lazúli. Percorremos, depois, sala por sala, o interior do palácio. Terminada a rápida visita, voltamos ao carro e continuamos a excursão rumo de Sintra.
Creio que se poderia fazer um estudo comparativo entre o espírito de Portugal e o da Espanha através dum paralelo entre as cortes, os castelos, palácios, mosteiros e catedrais desses dois países ibéricos. É muito conhecida a expressão "um Grande de Espanha", mas não me consta que se fale em "Grandes" de Portugal. As monarquias deste país — que eu saiba — jamais igualaram as da Espanha em esplendor e riqueza.
Desde que chegamos a Lisboa tenho notado que os portugueses não revelam a menor simpatia pelos seus vizinhos espanhóis e muito pouco sabem a respeito deles. Jorge de Sena assegura-me que "do lado de lá" predomina o mesmo sentimento e a mesma ignorância com relação aos portugueses e sua terra. Meu editor — cachimbo na boca, mãos no volante, olhos na estrada — diz: "Temos até aqui em Portugal um ditado muito expressivo. Da Espanha, nem bom vento nem bom casamento". (Curioso: sempre que hoje recordo a voz de Souza Pinto pronunciando essas palavras, ela me vem envolta na fumaça aromática de seu cachimbo, e na luz duma dourada manhã de primavera.)
Estamos entrando em Sintra, tão minha conhecida de velhas leituras de romancistas e cronistas do século passado. (Ó Deus, como estou ficando obsoleto!) Ponho a cabeça para fora do carro e aspiro um aroma de... flores de laranjeira. Em seguida meu olfato muda de opinião e decide que se trata de magnólias ou mimosas. Qual! Isso é perfume de madressilva, e da boa! Ou de jasmins? Concluo então que sob o azulíssimo almofariz invertido deste céu de abril, o vento, químico amador, tenta misturar a fragrância de todas as flores e plantas deste lugar. Sintra é um verdadeiro jardim botânico, espécie de mostruário da flora de Portugal. Aqui — afirma-se — existem mais de noventa espécies de plantas que não se encontram em nenhuma outra parte da Europa.
Entrevejo por entre árvores, no fundo de pequeno parque, um chalé claro. Digo aos companheiros: "Aposto que ali vive uma velhota inglesa solteirona e excêntrica, personagem à espera dum romancista". — "É possível" — sorri Jorge de Sena. — "Sintra sempre teve uma forte colônia britânica: poetas, pintores, escritores, diplomatas aposentados, boêmios..."
Lord Byron, que costumava visitar Sintra, descreveu-a com amor no seu poema Childe Harold. Penso nas cordiais relações seculares de tio rico e sobrinho pobre existentes entre a Inglaterra e Portugal. Os ingleses há séculos parecem ter encontrado em terras portuguesas seu sonhado jardim, seu solário e sua adega.
Saímos a andar a pé. Cruzamos a Praça Grande. Fiacres passam e o clop-clop das patas de seus cavalos parecem sinais duma mensagem em código, que só o romântico adolescente que me habita clandestinamente poderá decifrar.
Eu não sabia que Sintra tinha uma serra, espécie de espinhaço que em tempos imemoriais se ergueu da terra em conseqüência dum terremoto.
Visitamos o Paço Real, cuja miscelânea de estilos me desconcerta. Mas o espécime arquitetônico mais estranho de Sintra é o Palácio da Pena, muito mais novo que o castelo real, pois data de pouco mais de cem anos. "Nós portugueses lavamos as mãos desse crime" — sorri Jorge de Sena. — "Quem mandou construir este pot-pourri de pedra foi Ferdinando, um príncipe consorte alemão da casa de Saxe-Coburgo, marido de D. Maria III. O gosto é dele."
Examino o palácio. Que têm a ver essas cúpulas amarelas com a loggia manuelina e a torre gótica, acima das quais se empina, esbelto, altivo e como que alheio a tudo, um minarete mourisco? No interior do castelo — móveis, bibelôs, estatuetas, tapeçarias, quadros, armaduras, peças de cerâmica — não é menor a mistura, o anacronismo e, em certos casos, o gosto Kitsch. Uma das janelas parece chamar-nos com insistência... Acercamo-nos dela e compreendemos que sua intenção é mostrar-nos numa espécie de compensação — longe, no alto da serra, as ruínas "autênticas" duma severa torre mourisca e os restos de uma muralha do que foi em remotos tempos um bastião muçulmano.
Lembro-me agora de que, quando percorríamos o interior do Paço Real, Jorge de Sena me mostrou um de seus pátios, dizendo: "Está vendo aquele banco de azulejos? Conta-se que um dia o rei D. Sebastião ali se sentou para ouvir o próprio Luís de Camões ler-lhe trechos dos Lusíadas. O nosso fogoso monarca, que tinha apenas 24 anos, andava então ardendo numa febre de conquistas em África, pensando obsessivamente em deflagrar uma nova Guerra Santa". É possível — reflito — que Camões lhe tenha recitado os cantos que exaltavam as conquistas dos templários portugueses, e isso deve ter feito subir a febre do monarca, que sonhava com anexar Marrocos ao reino de Portugal. A verdade é que D. Sebastião lançou novos impostos, recrutou combatentes, pediu o auxílio de Felipe II de Castela e um dia meteu-se com suas tropas em quinhentas caravelas e se fez ao mar, rumo do Alentejo, trampolim para a África. O resto é História e lenda. Homem afoito, insistia em tomar parte na ação, correndo todos os riscos, como um simples soldado. Derrotado e, segundo se pode concluir, morto na batalha de Alcácer-Quibir, seu corpo entretanto nunca foi encontrado — fato que propiciou a lenda de que o romântico soberano haveria de retornar um dia a Portugal... Concluo que todo ser humano, em maior ou menor grau, alimenta uma forma de sebastianismo. Não escapei à regra. E o meu "monarca" casualmente chamava-se também Sebastião...


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Fria estava ainda aquela manhã de entrefechado inverno e entreaberta primavera em que deixamos Lisboa para visitar as províncias de aquém e além-Tejo. O veículo? Um automóvel alemão B.M.W. O piloto? Souza Pinto. O navegador e guia? Jorge de Sena. Os passageiros? A trinca Veríssimo.
O carro rodava, Estremadura acima, numa excelente auto-estrada, embora não muito larga, e que às vezes me parecia uma fita cinza-chumbo costurada sinuosamente sobre uma vasta colcha de retalhos nos mais variados matizes de verde e terra de Siena: trigais, vinhedos, arrozais, lavouras de cevada ou centeio... Nos pomares algumas árvores estavam carregadas de flores. Pinheiros alinhavam-se à beira da estrada. Passávamos também por olivais. Com sua folhagem dum verde claro e opaco, seus troncos contorcidos como a face de quem muito tem sofrido na vida, eles pareciam contemplar-nos com um ar tristonho. Bastava, porém, que a brisa soprasse um pouco mais forte para que essas árvores graves nos sorrissem tremulamente na súbita e breve prata do reverso de suas folhas.
O céu estava azul e eu me sentia azul por dentro. É que a paisagem, os ares, o povo e as póvoas de Portugal possuem o condão de liberar em nós sentimentos de ternura lírica e bucólica que, por machismo ou temor à pieguice, em geral costumamos encerrar a sete chaves na mais recôndita alcova da casa de nosso ser.
A etapa final daquela primeira jornada seria Coimbra, na Beira Litoral. A distância de Lisboa a essa velha cidade universitária em termos geográficos brasileiros é insignificante. Havia porém muita coisa a ver e fazer pelo caminho, se quiséssemos — e como queríamos! — ir tendo um sabor pronunciado de Portugal.
Nossa primeira parada na Estremadura é na vila de Mafra ou, mais exatamente, em seus arredores onde, em meio duma planície rica em pequenas hortas e pomares, ergue-se com fria e rija majestade o seu famoso palácio, conseqüência duma transação privada entre D. João V, rei de Portugal, e Deus. Conta-se que, em princípios do século XVIII, esse soberano português, que não tinha filhos mas ansiava por tê-los, elevou o pensamento ao Todo-Poderoso: "Se me concederdes a graça duma descendência, prometo mandar erguer para Vossa maior glória um palácio, com basílica e convento, tão grandioso quanto o Escoriai de Felipe II de Espanha". Não se sabe o que o Senhor do Universo respondeu, mas a verdade é que D. João V, o Magnânimo, tornou-se pai e cumpriu a promessa. Convocou arquitetos nacionais e estrangeiros, encomendou-lhes projetos, discutiu-os e aprovou por fim o que lhe pareceu mais grandiosamente belo e mandou construí-lo. Não teve problemas financeiros, pois na época o tesouro do reino estava atulhado do ouro e das pedras preciosas que vinham do Brasil. Momento houve em que cerca de cinqüenta mil operários — ou melhor, escravos, já que se tratava de trabalhos forçados — foram empregados na obra, dizem que ao mesmo tempo, o que não me é fácil imaginar.
Treze anos e cerca de mil e muitas vidas de escravos mais tarde, a construção foi inaugurada. E agora ali estava concretizada diante de nós a promessa de D. João V, com suas duas altas torres, onde se encontram famosos carrilhões, cinqüenta sinos em cada torre (e cá estou 'eu já nas frias garras da estatística), quatro mil e quinhentas janelas, a cúpula com zimbório numa remota parecença com a da basílica de São Pedro, em Roma. Jorge de Sena me chamou a atenção para as influencias do barroco alemão na ampla fachada. Eu não ignorava que o palácio possuía pomposos salões com uma abundância de mármores e douraduras, e que belíssima era sua sala do capítulo, importante sua biblioteca.
Ao recordar agora o momento em que estávamos os cinco viajantes parados diante daquele monumento arquitetônico, por mais que cavoque na memória não consigo atinar com o motivo por que não lhe visitamos o interior. Ocorrem-me hipóteses. Primeira: o edifício estava ocupado, pelo menos em parte, por uma repartição do governo em plena atividade. Segunda: nosso tempo naquela manhã fazia-se cada vez mais escasso... Terceira: eu havia declarado que a visita ao edifício não me seduzia porque tenho uma certa aversão ao mármore — sugestivo de túmulo, cemitério, morte, frios sonetos parnasianos. Ou então meu desinteresse e o de Mafalda pelo palácio de Mafra explica-se porque ele nos lembrou certas pessoas ricas e orgulhosas, de porte pomposo e insolente, com as quais não sentimos o menor desejo de fazer amizade, e cuja existência só nos toca de modo passageiro e formai. Se lhes somos apresentados, resmungamos secamente: "Prazer...", fazemos uma quase imperceptível inclinação de cabeça e seguimos nosso caminho.
Penso agora em que o paiácio-convento-basílica de Mafra bem podia ter-nos conquistado a simpatia se de súbito derramasse graciosamente por aqueles céus, ares e campinas a música de seus carrilhões... Algo de Bach, por exemplo. Ou mesmo um fadinho. Mas quem éramos nós para merecer tanto?
Voltamos para o B.M.W. e continuamos a viagem, agora rumo de noroeste. Eu estava curioso por conhecer Alcobaça. Não fora em vão que o adolescente lera O Monge de Cister, de Alexandre Herculano.


15

Ma! havíamos percorrido dois terços da distância que separa Mafra de Alcobaça quando, para minha surpresa e júbilo, uma pequena cidade murada surge em nosso caminho e na minha vida de "colecionador" de burgos antigos. Estamos às portas de Óbidos. Pare, meu caro Souza Pinto! Pela espada de D. Afonso Henriques! Pela glória da dinastia de Avis! Pelas patas do cavalo de D. Fuás Roupinho, pare!
O B.M.W. afasta-se da estrada e estaca. Não ignoro que esta visita não consta de nosso programa, mas sei que jamais me perdoarei se passar de largo por esta jóia de pedra. Desço do carro e dirijo-me para a entrada da velha cidade mourisca. A meio caminho uma súbita luz se faz sobre um pequeno mistério. Conheci a bordo do Federico C um professor universitário inglês aposentado que me dizia: "Quando em Portugal, não deixe de visitar Abêdos. É linda! É maravilhosa! É única!" Abados? Eu não conhecia nenhuma comunidade portuguesa com tal nome, mas isso não me impediu de fazer com a cabeça um sinal afirmativo. Agora está tudo claro. Abêdos é Óbidos!
Seria uma brutalidade, uma espécie de estupro entrar de automóvel nesta diminuta cidade. Decidimos visitá-la a pé. "É tão pequena" — diz Souza Pinto — "que nos bastará menos de um quarto de hora para ver tudo." Marcho à frente da fila indiana. Vou pensando em meu pai, razoável conhecedor da História de Portugal. Lembro-me de que um dia, sendo eu ainda menino, contou-me ele que D. Dinis, o rei Trovador, deu a cidade de Óbidos como presente de núpcias à sua esposa Isabel, que viria a ser conhecida na História como a Rainha Santa. Imaginei então uma cidade inteira embrulhada em papel de seda azul e amarrada com fitas douradas, em cima duma almofada de veludo, nos braços de cinco mil pajens...
Ainda do lado de fora ponho-me a fotografar Óbidos, na certeza de que nos meus diapositivos coloridos seu grande castelo mourisco e as suas muralhas de pedra amarelada vão parecer dourados à luz matinal. Óbidos está situada numa colina em cuja crista, à feição de proa de barco, ergue-se o castelo que D. Afonso Henriques conquistou aos muçulmanos em 1148. A cidade, que se conserva — dizem — quase tal qual era nos seus primórdios, no século VIII, está toda contida dentro das muralhas ameadas que protegem os flancos e a retaguarda do castelo.
Entramos. Óbidos não terá mais de cinco ruas, cujas casas se amontoam, quase subindo umas por cima das outras, num prodígio de pacífica convivência arquitetônica e urbana e de graciosa economia de espaço. As ruas são estreitas e curvas, sobem e descem, pavimentadas de pedra irregular, por entre as quais crescem ervas. E cá vamos nós, atentos a tudo, caminhando devagarinho, sem a coragem duma palavra, a não ser de vez em quando um bá! bem gaúcho. Sinto-me particularmente enternecido por esses beirais e telhados antigos e escuros em que o tempo e a intempérie pintaram belos quadros abstratos em sépia, vermelho de ferrugem, verde-prata e amarelo de ouro-velho. Como não posso levá-los comigo, fotografo-os. Lampiões de ferro batido pendem de arcadas ou salientam-se, sustentados por seus suportes de ferro rendilhado presos às paredes das casas, muitas delas tão brancas que parece terem sido caiadas ontem. Mafalda e eu continuamos em reverente silêncio, pisando de mansinho, como se temêssemos acordar um burgo adormecido ou profanar uma comunidade morta. Mas qual! Óbidos está viva e bem desperta. Um cachorro nos segue, rosnando baixinho. Um sapateiro remendão bate sola à frente de sua oficina, e quando passamos ele sorri e nos dá os bons-dias. (O "bom-dia" no plural me soa sempre mais jovial que no singular.) Um ferreiro malha em sua bigorna uma barra de ferro incandescente. (Sempre tive uma simpatia particular pelos artesãos.) Mulheres surgem às suas janelas, lançam-nos um rápido olhar e somem-se. Uma rapariga rega as flores de seu minúsculo jardim apertado entre duas paredes. Minha companheira surpreende-se ao ver uma árvore "em tamanho natural". Jorge de Sena leva-nos a visitar rapidamente as três (três!) igrejas que esta pequena cidade possui, todas elas numa riqueza de lápis-lazúli. E, de novo na rua, descobrimos uma pracinha com uma fonte, junto da qual duas senhoras idosas vestidas de negro, com xales escuros a cobrir-lhes as cabeças, conversam. Suas faces parecem tratos de terra ressequida por onde um arado tivesse andado a riscar sulcos sem sentido, nas mãos dum lavrador desvairado. Ao nos verem calam-se, olham-nos sérias e talvez apreensivas. Minha fantasia põe-se a trabalhar. Suponhamos que cinco pessoas do século XX esgueiram-se para dentro duma cidade que ainda vive em plena Idade Média... Bom, a idéia não é nova, já foi explorada incontáveis vezes por ficcionistas. Imaginemos então que essas duas figuras de negro vivem a vida de seu tempo e entram de súbito em pânico ao verem seu burgo assombrado por fantasmas vindos do futuro...
Pomo-nos a andar lentamente de volta às portas desta vetusta cidadela mourisca. Sinto não poder permanecer aqui por alguns minutos mais. Sento-me na saliência da base duma pequena torre e penso que não é impossível que um dia D. Dinis se tenha sentado exatamente neste lugar para escrever uma de suas cantigas. Mentalmente componho uma cantiga de amor e de amigo para Óbidos. Urna lagartixa sobe pela parede da torre e, parando por um instante a meu lado, parece fitar-me com seus olhinhos de obsidiana. Com a memória vejo-me menino no jardim do sobrado avoengo de Cruz Alta, observando um bichinho como este. (Será que o pensamento tem uma velocidade igual à da luz?) Passam-se quarenta anos e uma lagartixa esbranquiçada sobe pelas paredes da casa do Cel. João Falcão, prócer baiano de Feira de Santana, e do qual fomos hóspedes por uma noite. Transmito estes pensamentos a minha mulher, que exclama sorrindo: "As idéias que te passam pela cabeça!" No caminho de volta ao automóvel digo-lhe que precisamos viajar no estrangeiro com todas as lembranças do nosso passado nacional, a fim de que possamos ter sólidos pontos de referência no tempo, no espaço e na fantasia.
Fora dos muros da cidade fotografo uma igreja tão parecida com as de Ouro Preto, que seu risco bem podia ter sido feito pelo Aleijadinho. Um minuto mais tarde estamos todos dentro do carro, que arranca rumo de Alcobaça. Adeus, Óbidos! (Ou Abêdos.)

16

Parece geralmente aceita entre psicólogos e filósofos a idéia de que o ser humano não é um produto acabado, mas um processo transitivo, um contínuo devir. Creio que o mesmo acontece, apenas em ritmo mais lento, com os monumentos de pedra: castelos, catedrais, palácios, pontes... Nascem sob o signo do estilo predominante na arte de construir de seu tempo, e vão sendo alterados com o passar dos séculos, de acordo com a moda arquitetônica da época em que cada reforma é feita.
Chegamos a Alcobaça e nosso carro se detém à frente da entrada principal da igreja do famoso mosteiro. Não posso esconder meu desapontamento. Não vejo nessa fachada sua esperada beleza, sua tão apregoada grandiosidade. Bom, não negarei que é bonita. Construída de pedra calcária, dum creme dourado pelo sol — esse templo, considerado um dos maiores e mais importantes de todo Portugal, é um exemplo visível e palpável da teoria do devir aplicada aos monumentos arquitetônicos. Apesar de ter sido construído no período de transição do românico para o gótico, de gótico só vejo nele agora a porta ogival e, um pouco acima dela, uma rosácea. A parte superior da fachada — isso salta logo à vista — tem muito de manuelino e de barroco.
Quando, porém, entramos no templo este filho de D. Bega experimentou a sua mais profunda sensação de beleza desde que sentara pés em terras de Portugal. Foi uma espécie de "susto estético", se é que me faço entender... Já da porta divisei três longas naves ogivais de pedra cinzenta, as três da mesma altura, e em puro estilo gótico primitivo: o mais simples, harmonioso e austero conjunto arquitetônico religioso que até então eu encontrara, digamos assim, face a face. O interior do santuário me causou um impacto tão forte, que me cortou por um átimo a respiração. Foi como se eu tivesse sido arrebatado para a quarta dimensão, como já me acontecera algumas vezes na vida sob o sortilégio de certas peças de música. Nunca experimentara em ambiente algum tamanha sensação de recolhimento, silêncio e paz. Aquele conjunto de naves (que importa a cronologia?) bem podia ser a versão em pedra duma tocata de J. S. Bach para órgão, grandiosa apesar — ou por causa — da singeleza de sua linha melódica, tão olimpicamente serena na sua intemporalidade e no entanto tão sugestiva dos dramas do homem e dos mistérios da vida e da morte.
Fazia frio dentro do templo, mas não devia ser só essa a causa do arrepio que me percorria o corpo abrigado por grosso sobretudo. Perdi de vista os companheiros. Ouvia apenas o murmúrio de suas vozes. Continuei a contemplar, extasiado, a nave central — despida de ornamentos tanto na abóbada como nas altas colunas — e sutilmente me veio a revelação de que sua perspectiva não fugia apenas no espaço mas também no tempo e, não fosse o medo que tenho às palavras enormes, eu acrescentaria — na Eternidade. De súbito compreendi o misticismo, cheguei a ser eu próprio um místico, embora apenas por uma fração de segundo. Continuei a respirar um pouco ofegante, os olhos piscos e já meio úmidos, como à espera de que algo de sobrenatural estivesse prestes a acontecer. No fundo da nave central a luz da manhã entrava intensa por três janelas. Seriam os olhos fulgurantes de Deus que me contemplavam, querendo revelar-me um Mistério, algo capaz de mudar inteiramente minha vida interior?
Volto aos poucos ao mundo tridimensional e digo aos companheiros algumas palavras que me soam estúpidas, inanes. E os cinco nos encaminhamos para a ábside, lá no fundo. Visitamos depois o Claustro do Silêncio, mandado construir por D. Dinis. E estes dois sarcófagos de pedra tão delicadamente esculpidos que parecem obras de ourivesaria? Num deles jazem os restos de D. Inês de Castro, a que depois de morta foi rainha. Sobre a pesada tampa vejo estendida sua figura talhada em pedra, em tamanho maior que o natural. Seis anjos de asas abertas contemplam-lhe o rosto com uma expressão de terna tristeza. Este sarcófago foi desenhado e esculpido sob a fiscalização pessoal de D. Pedro I, seu desvairado amante, cujos despojos aqui se encontram também, num sarcófago idêntico ao de sua bem-amada. Assim — imaginava ele e acredita até hoje a fantasia popular — no dia em que os arcanjos fizerem soar suas trombetas, anunciando o Juízo Final, ao se erguerem de suas tumbas Inês e Pedro se encontrarão frente a frente, cairão um nos braços do outro e, de mãos dadas, comparecerão à presença de Deus, por quem serão julgados e naturalmente absolvidos, permanecendo depois juntos na Eternidade. (Já notaram como esta palavra anda me perseguindo?)
Souza Pinto consulta seu relógio-pulseira e convida-nos a visitar o resto do mosteiro. Antes, porém, de deixar o templo torno a caminhar por entre suas naves, pensando assim: "Talvez eu esteja vendo estas pedras pela última vez na minha vida. Sei que vou encontrar na Espanha, na França e na Itália catedrais românicas, góticas e barrocas mais grandiosas do que esta igreja monacal. Mas prometo, ó santuário de Alcobaça, que jamais te esquecerei. E se um dia eu tentar descrever em palavras o que senti hoje dentro de ti, perdoa à nossa língua pelas suas limitações e principalmente a este escriba por não saber manejá-la bem. E adeus!"
Não tentarei esconder minha ignorância — não total mas bastante grande — quanto à História de Portugal. É Jorge de Sena quem nos dá um resumo das origens do mosteiro de Alcobaça.
Tendo derrotado os muçulmanos na grande e crucial batalha de Ourique, D. Afonso Henriques proclamou-se rei de Portugal (1143) com o título de Afonso I, e a seguir empenhou-se em aumentar as terras de seu reino, combatendo e expulsando as forças do Islã, que se haviam estabelecido na Península Ibérica desde o ano de 714. Atacou e ocupou Sintra, Lisboa e depois Évora e outras cidades e territórios mouros do Alentejo. Faltava-lhe ainda conquistar Santarém, que estava em poder dos almóadas — membros duma dinastia berbere — cidade com fortificações formidáveis consideradas inexpugnáveis. Nas vésperas do assalto pediu a proteção de Deus, que até então tanto favorecera as armas de Portugal, e prometeu ao Altíssimo que, se conseguisse apoderar-se da cidade berbere, mandaria construir em algum lugar, não mui longe dali, um grande mosteiro dedicado à Virgem. Derrotados os almóadas em feroz batalha, Santarém caiu em poder dos portugueses. Afonso I tratou de cumprir sua promessa e para isso pediu o auxílio dos monges cistercienses de Clairvaux, França, cujo douto e virtuoso abade era Bernardo, o futuro São Bernardo. Ergueu-se o primeiro edifício do mosteiro na confluência dos rios Alcoa e Baça. Cedo os monges fundaram uma escola pública. Hábeis agricultores e horticultores, senhores de métodos próprios já famosos em toda a Europa (afirma-se até que esses tenazes e industriosos monges haviam exercido influência considerável no cultivo da lã na Inglaterra) começaram a cuidar do solo. Drenaram pântanos, detiveram a marcha das areias do litoral para o interior, arrotearam a terra, plantaram vinhedos e oliveiras, multiplicaram as lavouras e as hortas. Dentro em pouco o mosteiro de Alcobaça produzia as melhores frutas de Portugal, principalmente pêssegos, abricós, figos e uvas, e aquela parte da Estremadura passou a ser considerada a mais fértil de todo o país. Os monges de Clairvaux, que haviam trazido consigo da Borgonha hábeis arquitetos e escultores, empenharam-se na construção da igreja do mosteiro, que ficou pronta cerca do ano de 1222.
Como precisava povoar e tornar produtivos os territórios conquistados aos infiéis, Afonso I decidiu doar à Ordem de Cister toda a extensão de terra que ia de Óbidos a Leiria, tendo como limite ocidental o oceano.
A partir de certa época o mosteiro de Alcobaça chegou a ser um importante centro cultural, espécie de universidade popular, onde se ensinavam não só Gramática, Lógica e Teologia, como também artes e ofícios domésticos, agricultura e horticultura.
Parte do mosteiro hoje é ocupada por uma escola e por um quartel militar. Passamos pela biblioteca e pelo belo e amplo refeitório num marche-marche meio desatento de excursionista que, ao aproximar-se do meio-dia, entra a pensar mais com o estômago do que com a cabeça. Está combinado que almoçaremos em Nazaré, nossa próxima escala.
Confesso que das partes mais bem conservadas deste velho mosteiro medieval, a que mais seduz o romancista é a sua vasta e pitoresca cozinha. Subo para a plataforma de pedra dum assador: ergo a cabeça e vejo a boca da larga e longa chaminé de tijolos que termina lá no alto num quadrado luminoso de céu. Conta-se que aqui onde estou era possível assar em espetos rotatórios seis bois ao mesmo tempo. Outra curiosidade: um riacho, afluente do Alcoa, atravessa providencialmente a cozinha. Era em suas águas correntes e límpidas que os cozinheiros do mosteiro lavavam pratos, panelas, potes, canecos e provavelmente de vez em quando apanhavam algum peixe.
Antes de deixarmos Alcobaça visitamos rapidamente a esta hora meridiana a praça do mercado. Passamos por entre tendas onde se expõem espécimes da afamada louça azul e branca do lugar, que é realmente muito bonita, e também os famosos lenços de Alcobaça e tecidos de algodão estampados em cores vivas.
Mas o tempo passa. (Passa? Onde? Nos relógios? Na nossa mente?) Voltamos para o B.M.W., que se põe em movimento. Penso nas naves da igreja do mosteiro de Alcobaça, que já me parecem fora da dimensão do tempo humano.



17

Apenas uns dez quilômetros separam Alcobaça de Nazaré. O vento recende a maresia. Lanço um olhar enviesado para o meu relógio: ambos os ponteiros estão em cima do XII. A gorda voz da mulata Laurinda, cozinheira de meu avô paterno, me grita do passado: "Meio-dia! Panela no fogo, barriga vazia!"
Entramos em Nazaré, clara e alegre vila de pescadores, situada ao pé dum penhasco, à beira do mar. Descemos do carro na frente dum restaurante cuja fachada está voltada para o oceano. Respiro ar e sol. A luz mágica desta praia de areias levemente rosadas deixa alucinados os pintores que procuram reproduzi-la em suas telas. Vagamente encabulado por estar fazendo o papel de turista — mas consola-me a idéia de que o escritor pode ser a um tempo o satirizado e o satirista — ajusto minha câmara à luminosidade ambiente e ponho-me a tirar fotos a torto e a direito, principalmente a torto, como haveria de verificar mais tarde ao ver as fotografias reveladas.
Os pescadores de Nazaré vestem camisas e calças dum pano de lã xadrez de cores variegadas. Na cabeça usam uma carapuça preta afunilada, cuja ponta terminada numa borla lhes cai sobre os ombros. É dentro desse barrete que guardam tabaco, fósforos, dinheiro e outras miudezas.
Os restantes membros do nosso "safari" entraram já no restaurante onde vamos almoçar dentro em pouco. Mafalda e eu ficamos na praia, atentos agora ao seu elemento humano, pois já tivemos nossa dose de paisagem. "Já reparaste como são bonitas algumas dessas mulheres?" — pergunta minha companheira. Considero essas palavras um tanto insultuosas. "Claro que já" — respondo. As raparigas de Nazaré (ah! o esforço que como escritor tenho feito para reabilitar a bela palavra rapariga, tão desmoralizada no Brasil, onde no passado, pelo menos no Rio Grande do Sul, era sinônimo de prostituta e hoje, quando usada, é apenas para designar empregadinhas domésticas) mas, como ia dizendo, estas mulheres descalças de Nazaré usam em geral blusas escocesas de lã, e sete saias pregueadas e rodadas, uma por cima da outra, e que parecem dançar no ritmo de seus passos firmes. Andam descalças e quase sempre equilibram n?s cabeças cestos cheios de peixes e mariscos. "Nunca imaginei" — murmura Mafalda — "que fosse encontrar aqui mulheres e homens louros e de pele clara!" — "Não te esqueças" — digo — "que em remotas eras andaram por estas bandas raças nórdicas: celtas, visigodos, sue-vos..."
Quando os pescadores voltam ao mar nos seus barcos de proa recurva, de tipo fenício, pintados de cores vivas e "ilustrados" com figuras coloridas — peixes, galos, frutas, flores, imagens de santos — um companheiro postado na praia orienta, por meio de sinais de braços e mãos, o homem que está ao leme para que ele dirija a embarcação de modo a aproveitar convenientemente a última onda que a erguerá no seu dorso, projetando-a na areia da praia, onde uma junta de bois espera para puxá-la até à zona de areia seca. Desembarcado e selecionado o produto da pesca, são as mulheres dos pescadores que, numa longa fila, todos os dias levam os peixes frescos à vila para vendê-los no mercado. Esses barcos pesqueiros têm nomes pitorescos como Rosa-dos-ventos, Florzinha, Vida Minha, Menina do Mar, Medusa. (Importa muito ao leitor que eu esteja agora imaginando nomes para essas embarcações? Afinal de contas ninguém, nem mesmo os computadores eletrônicos, tem memória infalível.)
Quem são aquelas mulheres vestidas de negro, algumas idosas, outras de meia-idade e não poucas ainda jovens? São viúvas de pescadores que morreram no mar ou em terra firme. Segundo uma tradição local transformada em lei não escrita, mas nem por isso menos inflexível, uma viúva aqui não tem o direito de casar-se de novo.
Olho o céu, onde nuvens brancas sopradas pelo vento parecem barcos. (Era ou não era uma fatalidade esta imagem?) Em busca de que peixes navegarão essas claras e aéreas naves? Minha mulher, a quem repito a metáfora em voz alta, lança-me um olhar enviesado e murmura que a fome já me deve estar conturbando a mente. Caminhamos devagar ao longo da praia onde se estendem grandes redes de pesca. Um velho sentado num caixote fuma cachimbo e conserta sua rede. Ao passarmos por ele, ergue o rosto curtido de sol e vento: concluo que deve ter sido à força de tanto contemplar o oceano que seus olhos líquidos adquiriram essa cor entre azul e verde.
Uma velha vestida de negro fita o horizonte. Pensará na madrugada em que viu daquele mesmo lugar o marido partir no seu barco que o mar tragou? Esperará ela ainda que as águas cruéis lhe devolvam um dia o corpo do companheiro? E então de súbito o menino está em Cruz Alta, na Aula Mista Particular de D. Margarida Pardelhas, de pé junto de sua carteira, com a Seleta em Prosa e Verso nas mãos, lendo em voz alta um trecho de Pinheiro Chagas, intitulado Os Restos do Naufrágio, e que começa assim: Nas praias da Bretanha vivia um pescador com a mulher e um filho...
Mafalda me toca no braço e eu retorno a Nazaré, quarenta e quatro anos mais tarde. Indico com um gesto de cabeça o grande penhasco onde, segundo a tradição católica, operou-se o milagre que salvou a vida do fidalgo D. Fuás Roupinho, cujo cavalo estava prestes a precipitar-se no abismo mas foi a tempo detido por intervenção da Virgem, a quem o cavaleiro, pressentindo o perigo, pedira socorro numa oração-relâmpago. Murmuro: "Dom Fuás... que bom nome para o nosso neto! Dom Fuás Veríssimo Jaffe. Mas agora é tarde. O menino já foi batizado, vai ser pelo resto da vida um Mike como centenas de milhares de outros no mundo anglo-saxônico".
Passamos por um grupo de pescadores que conversam em voz alta. Falam uma língua que não conseguimos entender, por mais atenção que lhe prestemos. Dizem que os nazarenos se alimentam de peixe. Acho que também gostam de comer vogais.
Dirigimo-nos agora para o restaurante, a cuja porta nosso filho nos faz com os braços sinais semafóricos, usando o código elementar de seu apetite.
Sentamo-nos os cinco a uma mesa junto duma janela que se abre para a praia. Em cima de outra mesa menor, ao lado da nossa, vejo um caranguejo gigantesco, com cambiantes cores outonais, mas nem por isso menos terrível em seu aspecto ante-diluviano. Cada um de nós apanha um cardápio — aqui chamado ementa — e trocamos sugestões sobre o que se vai comer. Quero provar lulas, mexilhões, ameijoas, talvez menos seduzido por esses moluscos do que por seus nomes. É como se eu sentisse mais apetite pelos significantes do que pelos significados. E um polvo assado, hem? E camarões à moda da casa? Mas por que não ostras? — prossigo, pois sei que Mafalda as detesta sem jamais tê-las provado. Conhecedora profunda das debilidades de meu aparelho digestivo, ela veta o meu pedido desses "sonoros" frutos do mar. "Estás em viagem. Não podes adoecer." Ela própria tem um medo invencível às infecções intestinais produzidas por peixes e mariscos em mau estado de conservação. Costumo dizer-lhe que ela precisa aprender a fazer pesca submarina a fim de poder comer sem receio o peixe debaixo dágua, menos dum minuto depois de arpoá-lo. O garçom anota os pedidos dos outros companheiros. Quando chega a minha vez, opto por uma lampreia grelhada com batatas cozidas e uma salada verde. Mafalda solidariza-se comigo na lampreia, porque afinal de contas o mar encontra-se a poucos passos do restaurante e o peixe deve estar em excelente estado sanitário — se é que se pode dizer isto dum peixe morto. Souza Pinto consulta-nos sobre vinhos. Declaro-me analfabeto no assunto. Meu editor recomenda-nos um Dão branco. Poucos minutos mais tarde Luís Fernando está entretido e aparentemente feliz com sua lagosta cozida e seus graúdos camarões... A conversa entra pela porta da cozinha portuguesa: as mil e uma maneiras de preparar o bacalhau, o uso abundante do óleo de oliva, de pimentões e tomates e azeitonas como temperos, isso sem falar nas ervas do Algarve com belos nomes de origem árabe.
Abrem-se grandes silêncios durante os quais a alegria de comer parece bastar-nos, mas comer assim entre amigos, em espírito de feriado. Nossa única "obrigação" para o dia de hoje é chegar a Coimbra, pois a partir de amanhã temos de começar a cumprir o programa que nos foi traçado pelos universitários para os dois dias que lá vamos passar. O caranguejo gigante parece atento às nossas palavras e aos nossos silêncios. Bem pode ser um agente da P.I.D.E. disfarçado.
De vez em quando olho para fora através da moldura da janela. Com a cumplicidade do sol, do vento e das nuvens o mar brinca de calidoscópio.
À hora da sobremesa Mafalda e Jorge de Sena descobrem uma afinidade: ambos gostam de doces. Penso logo nos ovos moles d'Aveiro, da particular predileção do nédio Dámaso Salcede, personagem de Eça de Queirós... Jorge de Sena pergunta se já provamos os "rebuçados d'ovos" de Portalegre. Não. E os "papos-de-freira"? E os "toucinhos-do-céu"? Quando passarmos por Abrantes haveremos de saborear sua famosa "palha" e seus "queijos-do-céu".
Trazem-nos uma cabaça com frutas, que permanecem intocadas em cima da mesa, como uma natureza morta. Café? Todos aceitam. Por fim nosso anfitrião pergunta: "Um conhaque, Jorge de Sena?" Teríamos de ouvir esta frase muitas vezes, durante aquela memorável excursão. Ao sairmos do restaurante fico por algum tempo a contemplar as águas. Para nós turistas este é um mar alegre, lúdico, parte dum quadro. Para as mulheres de roupagens negras de Nazaré é uma entidade enigmática, ora dadivosa ora perversa, que lhes fornece o sustento de cada dia mas que também às vezes devora implacavelmente seus homens.

18

Três e pouco da tarde. Nossa caravana está de novo na estrada, rumo do monumento histórico mais celebrado e querido de Portugal: o mosteiro da Batalha. Jorge de Sena fornece-nos dez escudos de História enquanto o automóvel roda macia-mente sobre o asfalto, atravessando um prado de tenros verdes.
A brisa balança os salgueiros e faz tombar pétalas de flores de cerejeiras e ameixeiras nos pomares. Fumegam as chaminés dos casais, galinhas ciscam o chão moreno dos quintais, lírico é o céu, e uma grande paz luminosa se espreguiça na paisagem — e por tudo isso me é difícil imaginar que foi aqui, nesta planície de Aljubarrota, que em 1385, auxiliado pelo seu bravo capitão
Nun’Álvares Pereira e alguns cavaleiros e soldados ingleses, D. João I comandou seus seis mil soldados, enfrentando em batalha campal o exército castelhano invasor, forte de 36 000 homens. Campônios lusos armados de varapaus, ancinhos, foices, enxadas também tomaram parte ria resistência. Conta-se que no decurso da refrega a mulher dum padeiro matou a golpes de pá seis soldados castelhanos que se haviam escondido no seu forno. Na batalha de Aljubarrota tiveram as forças lusitanas a maior vitória militar de sua História.
Em ação de graças pelo triunfo das armas portuguesas, D. João I mandou erguer um mosteiro de proporções grandiosas a uns três quilômetros do lugar onde se travara a batalha, e dedicou esse santuário a Santa Maria da Vitória.
A aldeia (ou vila?) de Aljubarrota, hoje em dia mais conhecida pelo nome de Batalha, é tranqüila, graciosa, asseada como quase todas as outras aldeias e vilas que temos encontrado nesta excursão. Nosso automóvel atravessa-a em marcha lenta para que possamos ver melhor seus habitantes. As mulheres me parecem belas e rijas. Os homens, bom... que adjetivo devo usar para esses aljubarrotenses ou aljubarrotanos? Bonitos? Não fica bem... Digo então que são fortes e têm caras simpáticas. Em breve a aldeia fica para trás, nosso carro transpõe uma ponte de pedra e minutos mais tarde avistamos o mosteiro.
Minha primeira impressão do conjunto é a de que estou diante duma construção em estilo gótico que lembra muito o flamejante francês, mas que foi achatada não sei por que imensa e perversa mão.
Descemos do carro. Examino melhor a fachada do mosteiro, construído de pedra calcária cor de ouro velho, lembrando um pouco o arenito avermelhado da igreja, hoje em ruínas, da extinta redução jesuítica de São Miguel, no meu Estado natal. Sei que a Batalha foi construída numa época de transição entre o românico e o gótico. Ao primeiro relance não vejo nesta estrutura nada de românico, a não ser sua pouca altura. Mas... vamos devagar. Que entendo eu de arquitetura? Examino melhor a fachada da Batalha. Tem uma porta magnificamente entalhada e altas janelas ogivais. Seu perfil está eriçado de pináculos e campanários. Em seu frontão vejo o relevo de estátuas de reis, santos, papas, mártires e, se não me enganam os olhos, até um Cristo sentado num trono. Isso tudo me parece uma prodigiosa renda de pedra, tal é a delicadeza com que essas figuras e arabescos foram esculpidos. Concluo que se esta catedral conseguisse "emagrecer", ou melhor, crescer, subir para o céu, acompanhando pelo menos durante uns cem metros a assunção de sua padroeira, teríamos aqui sem a menor dúvida um belo exemplar do gótico florido, de tipo francês. Mas não estarei raciocinando com o coração? Quem pensa e sente nestes primeiros minutos de contato visual com o mosteiro da Batalha é o mesmo homem que ainda hoje prometeu fidelidade amorosa eterna ao austero interior da igreja de Alcobaça. É como se eu me tivesse apaixonado por uma mulher sem pintura no rosto de expressão severa, vestida com um bom-gosto discreto e agora corresse o perigo de deixar-me seduzir por essa dama tão ricamente trajada, tão resplendente de jóias e rendas.
Entramos no templo. Suas ogivas interiores me encantam, principalmente as da nave central. A pedra aqui dentro é também trabalhada com uma delicadeza minuciosa de ourivesaria. E os vitrais, devidamente ajudados pela luz solar, parecem apelar para este apaixonado por imagens e cores que sou.
Nossa visita à Batalha é um tanto desordenada. Vemos a tumba de D. João 1 e a do Soldado Desconhecido, a solene sala do capítulo com sua cúpula e depois as esquisitas capelas inacabadas, chamadas "imperfeitas", e nas quais se notam influências do estilo manuelino. D. Duarte, sucessor do Vencedor de Aljubarrota, mandou construir para si e seus descendentes uma capela funerária que não conseguiu ver terminada, pois a morte o levou antes disso. Existem ao todo na Batalha sete "capelas inacabadas", e o curioso é que o tempo fez a seu modo e em seu estilo o que os homens não planejaram fazer, de modo que hoje essas capelas possuem uma estranha força dramática e evocativa.
No claustro, também em estilo manuelino, com vagas influências bizantinas, rico em mármores brancos esculpidos — flores de lotos, a cruz de Cristo cercada de arabescos — por alguns instantes me sinto culpado de traição a Alcobaça. Percorremos também a capela dos túmulos reais, onde estão sepultados D. João I e D. Filipa, o infante D. Henrique, o Navegador, e D. Fernando, conhecido como o Infante Santo. Num outro claustro vemos, com seus respectivos brasões, as sepulturas onde jazem os despojos dos muitos príncipes que ajudaram materialmente a construir este mosteiro.
Dentro em pouco sinto-me estonteado em meio de tantos vitrais, abóbadas, colunas, ogivas, desenhos mouriscos, góticos, renascentistas... Concluo que eu bem me podia casar legitimamente com Alcobaça e de vez em quando — talvez aos domingos — vir visitar clandestinamente a Batalha. Julgo que não haveria malícia nem pecado nesse adultério arquitetônico...


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De Batalha a Leiria é apenas um pulo. A primeira coisa que avistamos de Leiria, ainda de dentro do carro em movimento, é o vulto do castelo de D. Dinis, no alto duma colina, e depois o longo pinheiral que o soberano mandou plantar e que à luz de âmbar deste entardecer, sob um céu que já empalidece, não deixa de me parecer uma cantiga póstuma do rei trovador — cantiga ao mesmo tempo de amigo e de amor.
É curioso como estão agora esfumadas em minha memória as lembranças dessa nossa breve parada em Leiria. Creio que lá passei quase uma hora dando autógrafos numa livraria, e que ouvi dois discursos e fiz um... ou então nada disso aconteceu. Conheci algumas pessoas cujos nomes me fugiram da memória, saí depois com os companheiros e alguns próceres locais pelas ruas da bela cidade, que desde os tempos medievais tem a fama de dar grande apreço à cultura. Contava Leiria, ao tempo de D. Dinis, com uma numerosa colônia judaica de muito boa qualidade intelectual. Foi aqui que se fundou a primeira fábrica de papel de Portugal e uma de suas primeiras imprensas.
Parece mentira, mas todos os fatos históricos que aprendi sobre D. Dinis e sua esposa Isabel parecem ficção quando comparados no meu espírito com a estória e as personagens inventadas por Eça de Queirós em seu romance O Crime do Padre Amaro. Procurei ver a "longa alameda macadamizada que vai junto do rio, entre os dois renques de velhos choupos" e onde, segundo o escritor, o cônego Dias e seu Coadjutor passeavam naquele longínquo agosto, enquanto esperavam a diligência que traria à cidade seu novo pároco, o jovem P.e Amaro Vieira. Vi o largo do chafariz onde, de lanternas acesas, e puxada por dois magros cavalos brancos, a diligência veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz. "...e um homem desceu cautelosamente... bateu com os pés no chão para os desentorpecer, e olhou em redor."
Estou vendo a cena, pois li esse romance mais de cinco vezes, em diversas épocas da minha vida. Jorge de Sena mostra-nos um sobrado esbelto de dois andares e diz: "Pela descrição do romancista, podemos deduzir que esta era a casa de Amelinha onde o P.e Amaro hospedou-se". Contemplo o sobradinho com uma ternura meio desconfiada e tento confrontar o que vejo com a imagem da residência da S. Joaneira que guardo na memória. Concluo que uma das vantagens do livro sobre os meios de comunicação audiovisuais é a de que no caso destes últimos a imaginação do espectador fica irremediavelmente presa ao que vê e ouve, ao passo que a cada re-leitura dum romance o leitor imagina as personagens, as cidades, as ruas, as casas e seus interiores de maneira diferente, embora as palavras do autor da narrativa permaneçam as mesmas.
Cerca de um quarto de hora mais tarde estamos todos no B.M.W. rumando para a estrada. Ao passarmos pela frente da casa da S. Joaneira sinto um ímpeto de gritar: "Amelinha, toma cuidado com esse padre!"


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Anoitecia já quando descemos do carro para ver as ruínas de Conímbriga, que distam apenas uns quinze quilômetros de Coimbra. À luz do crepúsculo passeamos por entre os restos duma cidade' fortificada que os invasores romanos fundaram antes da Era Cristã e que os suevos destruíram no ano de 648 D.C. As escavações que devolveram à luz do sol e da lua as ruínas da mais importante cidade romana de Portugal, foram iniciadas em 1930: um achado arqueológico de importância capital.
Ao lusco-fusco da hora pareceram-me fantásticas aquelas colunas que à distância sugeriam os remanescentes duma floresta incendiada, com troncos de árvores mutilados. Vimos restos de palácios, átrios pavimentados de mosaicos com desenhos de cores apagados pelo tempo e pela penumbra da hora. Passamos sob o arco que devia ter sido parte dum aqueduto de grandes proporções. Os arqueólogos que ali trabalharam durante anos descobriram as ruínas de três portas de Conímbriga, vestígios de palácios, casas de comércio, termas. Encontraram esteias funerárias, vasos etruscos e moedas — peças que foram identificadas e depois levadas para um museu, em Coimbra.
Jorge de Sena dissertou brevemente sobre Conímbriga. De súbito calou-se. Senti então o mistério daquela hora que eu havia de recordar dois anos mais tarde quando, estendido numa cama, entre a vida e a morte, angustiado e febril, em espírito eu procurava refúgio naquele momento e naquele lugar de silêncio e paz, que haveria de ficar-me na memória como um mágico retalho recortado ao tecido do Tempo.


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Chegamos a Coimbra depois das oito da noite. Cinco estudantes, representando a Associação Acadêmica, esperavam-nos à frente do hotel onde nos íamos hospedar. Cabeças descobertas, capas e batinas negras, de acordo com a tradição da velha universidade — receberam-nos com uma cordialidade um tanto cerimoniosa. Eram rapazes cujas idades iriam de vinte e dois a vinte e cinco anos. Notei que a boa qualidade de suas roupas denunciava neles filhos de famílias ricas ou pelo menos remediadas.
Desde as primeiras palavras que trocamos procurei deixá-los à vontade. Após os apertos de mão e dos cumprimentos de praxe (ah! como lamento não ter tomado nota do nome de cada um desses dedicados estudantes!) disse-lhes: "Tenho a impressão de que estou no Brasil. Agora sim acredito que brasileiros e portugueses somos gente do mesmo sangue. Você aí" — e apontei para um deles — "bem podia ter nascido em São Paulo, filho dum próspero plantador de café. Agora você" — continuei, voltando-me para outro — "tenha paciência, mas você é irremediavelmente gaúcho, natural de Bagé, São Gabriel ou Dom Pedrito, filho dum estancieiro proprietário de muitas léguas de campo e milhares de cabeças de gado... Essa capa negra bem podia ser um pala... E como lhe sentaria bem um palheiro aceso entre os dentes!" (Tive de explicar o que era palheiro.) Um moço moreno, o mais franzino dos cinco e o de olhos mais vivos e maliciosos, sorriu: "E eu?" Lancei-lhe um olhar avaliador e decretei com a tirania (aparente) que o romancista exerce sobre suas personagens: "Você só pode ser carioca". Foi nesse momento que surgiu no saguão do hotel, retardatário e imponente, um estudante alto, corpulento, de cabeça leonina, evidentemente o mais velho do grupo e que nos foi apresentado solenemente como sendo S. Ex.a o Dux Veteranorum. O Chefe dos Veteranos! A cada aperto de mão o recém-chegado fazia uma leve curvatura de busto, enquanto se desculpava pelo atraso. "Então vosso palanquim chegou fora do horário, excelência?" — perguntei-lhe com fingida solenidade. E o Dux, com entonação de teatro antigo, exclamou: "Hoje em dia não se pode ter confiança nos fâmulos. Ah! Essas malditas reivindicações sociais..." E nesse momento um dos rapazes, de face longa e ar retraído, e que até então se mantivera meio escondido entre os companheiros, acercou-se de mim e, voz e gesto em surdina, perguntou: "E eu, Dr. V’rissimo, de que parte do Brasil sou?" A resposta me ocorreu rápida: "Você, sem sombra de dúvida, é um bom mineiro". O estudante sorriu e murmurou: "Curioso. Sou natural duma região montanhosa. Nasci numa pequena vila perdida num socavão da Serra da Estrela". O Dux Veteranorum postou-se diante de mim: "E eu... de onde venho?" Refleti por um momento e descrevi, grave: "V. Ex.a é um português que vive no Rio de Janeiro, onde fez fortuna como atacadista. Além de comendador, é presidente do C. R. Vasco da Cama".
Nossa ceia foi breve e leve. Os estudantes sentaram-se à nossa mesa e com eles discutimos o programa do dia seguinte. Antes das dez horas recolhemo-nos aos nossos aposentos. Agradavelmente amolentado por um banho morno meti-me sob as cobertas, cerrei os olhos e pensei naquele dia que nosso deslocamento no espaço tornara tão ricamente longo. Pensei nos monumentos visitados, nas pessoas e paisagens vistas ou entrevistas — e com que nitidez se impôs então à minha lembrança a figura da linda mulher trigueira pela qual eu passara em Leiria, na rua! A corrente de meus pensamentos era como uma espécie de montanha-russa vertiginosa que numa de suas bruscas descidas me fez tombar no abismo do sono. Dos sonhos daquela noite só guardo a confusa lembrança de ter andado perdido por entre as naves da igreja de Alcobaça, à procura de alguma coisa ou de alguém.


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Na manhã do dia seguinte abrimos as janelas de nosso quarto para um céu limpidamente azul e para uma brisa ainda fria. Digo a minha mulher que a Primavera é uma cachopa tão ávida de festas que, semanas antes do dia da celebração oficial de seu equinócio, começa a vestir-se toda de verdes e a enfeitar-se de brotos e flores, ao passo que o Inverno, sujeito teimoso, insiste em ficar até ao dia em que o calendário lhe ordena que saia de cena — ordem a que nem sempre ele obedece. Quanto ao vento, ora o vento é um bom menino que deseja agradar a todos, e no interlúdio entre duas estações carrega em suas asas irresponsáveis tanto o frio hálito do velho retirante como os frescos perfumes da moça que se prepara para seu rito triunfal. Em suma, embora nossos olhos já vejam a face e nosso olfato sinta as fragrâncias da Primavera, nossa epiderme está ainda meio arrepiada de frio.
Desconfio que Coimbra já descobriu meu fraco pelas cidades antigas e — modéstia à parte — direi até que está se oferecendo para ser incluída na minha burgoteca. Tem tudo para isso. Situada numa alta colina, suas ruas estreitas descem pelas encostas até o vale do Mondego. Sua história mais que milenar parece estar escrita pela mão do tempo nestas pedras, nestes telhados, no pavimento irregular destas ruas e becos e nas lajes destas calçadas. Eis uma cidade que pode ser comparada a uma senhora de passado tempestuoso e que nada faz para esconder sua avançada idade nem suas origens plebéias. Todo o mundo sabe, e Coimbra não nega, que ela nasceu dum acampamento de invasores romanos e que desde remotas eras começou a ganhar importância, pois pelo sopé da colina em que nasceu passava obrigatoriamente a via militar que levava de Braga a Lisboa. Quando ainda moça, Coimbra foi violentada, digo, invadida pelos álanos — bárbara gente oriunda de uma região entre o Cáucaso e o mar de Azov — e depois possuída temporariamente pelos visigodos, pelos suevos e mais tarde destruída pelos sarracenos, que a reconstruíram mas que finalmente vieram a perdê-la para as tropas de Fernando I, de Castela (1104).
Coimbra foi assim levada a uma vida mais ou menos respeitável. Prova disso é que em 1139 foi feita capital do reino de Portugal. De nada disso, porém, esta cidade parece orgulhar-se. Sua grande glória é a de ser a sede duma das mais antigas e importantes universidades da Europa.
Como ficam rusticamente belos ao sol da manhã esses velhos telhados limosos, esses muros, fachadas e portões que olham passar o tempo, os homens, suas guerras e paixões! Coimbra é uma cidade que não usa maquilagem. Vemos a cada passo em suas ruas estudantes vestidos de negro. Segue-nos um pequeno bando de meninos mal-vestidos e descalços, o qual por sua vez é seguido por cachorros como aquele que ali vai trotando, o ar timidamente inquisitivo e pateticamente súplice de quem anda em busca dum dono, dum amigo, dum amor. E aqui marchamos nós, os cinco membros deste safari branco de paz e amizade, comboiados carinhosamente pelos estudantes que nos receberam ontem. Um deles nos informa que esta parte da cidade é conhecida como a Alta.
Foi com uma emoção morna e um pouco buscada que pisei as lajes que pavimentam o largo à frente do edifício principal da Universidade de Coimbra, pensando nas grandes figuras de mestres, sábios, humanistas, homens de letras, artistas ("E bestas!" — exclama o espectro de Eça de Queirós, aparecendo-me de súbito) que por ali deviam ter passado durante séculos. Lá estava a famosa torre com o relógio e o sino de chamada, conhecido entre os estudantes como "a cabra".
Como era de esperar-se, a universidade é formada de edificações dos mais diversos períodos e estilos. Passamos pelas mais modernas — algumas ainda inacabadas — como gato sobre brasas. O que mais me impressionou nessa visita foi o conteúdo e o continente da preciosa biblioteca joanina, com seu meio milhão de volumes e manuscritos, suas estantes de madeira negra, finamente entalhadas, com adornos dourados, seus mármores e sua atmosfera de austeridade. Aspirei seu indescritível odor de Tempo e História. Tem-se a impressão de que, ao cabo de longa permanência num ambiente como esse, uma pessoa pode adquirir por osmose ou por outro processo ainda mais sutil uma certa cultura ou, pelo menos, um inequívoco respeito pelos livros e seus autores. Visitamos outros salões e detivemo-nos por mais tempo naquele de cujas paredes pendem retratos a óleo de antigos reitores da universidade. Notei que um fotógrafo nos seguia, preparando-nos em cada sala uma emboscada. Quando menos esperávamos lá estava ele ajoelhado, com sua câmara assestada na nossa direção, fazendo fuzilar a sua lâmpada.
Tenho o vezo, que talvez me venha do berço, de nem sempre estar presente em pensamentos no local onde meu corpo se encontra fisicamente. Como pássaros inquietos, minhas idéias costumam fugir, sem aviso prévio nem ruído de asas, para os céus do passado e às vezes até para os do futuro. (Devo sofrer duma espécie de doença da atenção.) Desde que começamos a andar pelas numerosas dependências desta universidade tenho alternadamente dividido minha atenção entre o agora, o ontem e o amanhã. Se não me falha a memória, existe num de meus romances uma personagem (Será Clarissa?
Ou Noel?) que só sabe gozar profundamente o momento presente quando este se transforma em passado e pode ser lembrado e revivido em solitude e tranqüilidade.
"Esta é a Faculdade de Letras" — ouço alguém dizer, ao entrarmos num prédio. Outra voz: "Camões estudou aqui?" Uma terceira voz: "Não. Não há nenhuma prova disso. É possível e mesmo provável que Camões tenha feito seu curso de Artes e Humanidades num colégio que existia em Coimbra, no mosteiro de Santa Cruz, dirigido por cônegos da ordem de Santo Agostinho".


23

Almoçamos no restaurante Pinto de Ouro com o Dux Veteranorum e mais três dos rapazes que conhecemos ontem. Insistimos para que o Dux ocupe uma das cabeceiras da mesa. Decerto já correu entre os universitários a informação de que não sou um "senhor formal": sinto-os agora descontraídos e naturais. Contam piadas sobre a vida estudantil de Coimbra. O Dux, alvo de muitas das brincadeiras verbais dos companheiros, escuta-os sorrindo com um ar de superior e adulta indulgência. Pergunto se Coimbra conserva a velha tradição de boêmia e combatividade ideológica, como nos tempos da famosa Geração de 1865, de que faziam parte personalidades como Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, João de Deus e Guerra Junqueiro... "Qual! Qual!" — exclama um dos estudantes. — "Ainda se brinca um pouco, é verdade, mas..." Cala-se. Os outros se acumpliciam com esse silêncio, mas todos me parecem mais resignados ou indiferentes do que tristes ou revoltados. Um deles exclama: 'Que diabo! Ainda nos divertimos um bocado. Fazemos nossas serenatas, visitamos o choupal, temos as tricanas... Mas não podemos deixar de reconhecer que os tempos mudaram..."
Saímos do restaurante para um tépido e claro princípio de tarde. Aonde vamos? Alguém sugere um passeio pelas margens do Mondego. A idéia é aceita. Enfiamos por uma ruela em declive, de calçadas estreitas, que nos leva até à beira do rio. Ao avistar as celebradas águas, penso no poeta Antônio Nobre, o solitário e orgulhoso Anto, autor de Só, e que tantos versos escreveu sobre este curso dágua.

Vou encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, qu'é da tua água
Qu'é dos prantos que eu chorei?

Caminhamos vagarosamente ao longo da avenida de choupos que acompanha as preguiçosas curvas do rio,, em meio do qual avistamos pequenas ilhas floridas, verdes de tílias e salgueiros. O Mondego parece um rio paradisíaco que flui sem pressa nem cuidados para o mar. Um dos estudantes, futuro engenheiro hidráulico, me informa que períodos há em que esta corrente transborda, inundando as campinas e boa parte da cidade baixa, em derredor. Essas cheias chegam a ter com freqüência um caráter calamitoso. A antiga e histórica igreja de Santa Clara, situada perto do Mondego, está quase submersa, pois seus contrafortes já afundaram mais de cinco metros. O jovem continua a falar, mas a idéia "igreja submersa" me faz pensar imediatamente em La Cathédrale Engloutie, de Debussy, e eu passo a ouvir com a memória, num disco de 78 rotações, a sugestiva melodia, contra um fundo feito dum estralar de pipocas. Por alguns segundos não estou mais em Coimbra, em 1959, mas em Cruz Alta, em 1926, tentando compreender Debussy.
Jorge de Sena conta-nos que a Rainha Santa mandou construir, a pequena distância dessa igreja agora perdida, um palácio para sua residência particular, e para lá se retirou depois que seu esposo e senhor D. Dinis foi chamado à presença de Deus... ou do diabo. E foi nesse mesmo palácio que muito mais tarde o rei D. Pedro teve secretos encontros amorosos com sua adorada Inês que, segundo as palavras do Bardo, lá vivera posta em sossego, até o dia em que membros da Corte mandaram assassiná-la, sob a alegação de que era muito perigoso uma princesa galega ter tamanha influência sobre um rei de Portugal. As águas do Mondego — penso — testemunharam esse e outros crimes, através de séculos. Mas não! A dar crédito — e eu dou — à idéia de Heráclito de que não nos é possível atravessar duas vezes o mesmo rio, o que está de pleno acordo com a moderna teoria psicológica do contínuo devir do homem — as águas que passavam na trágica hora em que D. Inês era impiedosamente degolada, já se perderam há mais de seis séculos no oceano. Essa corrente que agora passa por nós nada sabe desse crime, embora possa saber de outros.
Voltamos para a cidade alta, subindo uma ladeira estreita e tão íngreme que lhe dão aqui o nome de Quebra-Costas. (Em Salvador, na Bahia, existe uma rua tão perigosamente empinada, que lhe chamam brasileiramente Quebra-Bunda.) Passamos sob o arco que se abre por baixo duma torre meio derrocada, restos das muralhas que defendiam a antiga Coimbra.
Subo em silêncio. Sinto uma leve dor anginosa. "Estás bem?" pergunta M. Sacudo a cabeça num mentiroso sinal afirmativo. E de vez em quando, a pretexto de examinar melhor uma velha casa ou um balcão, faço alto para recobrar o fôlego e aliviar a pressão no peito. O coração me bate mais acelerado que de costume. E agora, passados dezesseis anos eu me pergunto o porquê dessa simulação. Machismo? Pudor de revelar fraqueza? Temor de deixar minha companheira alarmada? Relutância em aceitar o fato de que tenho problemas cardíacos? Não sei se durante todo esse tempo consegui obter uma resposta honestamente satisfatória a todas essas indagações.
Quando chegamos à parte mais alta da ruela avisto a Sé Velha e me considero recompensado de todo o esforço feito. É um templo maciço, de aspecto austero, em bom estilo românico, sem imagens esculpidas na fachada. Entramos em seu frio ventre de pedra. Sentamo-nos num de seus bancos. Minha mulher ajoelha-se e põe-se a orar. Jorge de Sena me leva até ao famoso retábulo de madeira esculpida e pintada, obra de Olivier de Gand. Voltamos depois para o ar livre, para o sol, onde nos reunimos aos estudantes que nos acompanham.

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Como lembrar-me agora de todas as coisas que fizemos naquele resto de tarde? Vimos, disso me lembro claro, a Sé Nova, grandarrona, branca, barroca — para meu gosto sem a beleza e a dignidade da Sé Velha. Fica num largo onde habitualmente se realizam feiras, e suas escalinatas são o ponto de reunião dos estudantes nas horas de folga. Conta-se que foi neste largo que Eça de Queirós avistou pela primeira vez Antero de Quental, pessoa pela qual tinha a maior admiração, estima e respeito.
O que há de errado com as viagens é que — tomemos o meu caso — um homem passa boa parte da vida desejando conhecer de verdade o mundo que lhe prometeram os livros, os filmes de cinema, as revistas ilustradas... Um dia, quando consegue recursos financeiros para viajar, tem de enfrentar problemas de tempo, de programas mais ou menos rígidos, provocados quase sempre por seu apetite geográfico acumulado e pela curiosidade. Ora, um ser humano pode passar uma semana inteira em jejum absoluto, mas se no domingo lhe derem um farto banquete, sua capacidade de comer terá um limite que o faminto não poderá transpor sem o risco de ter uma indigestão perigosíssima. O mesmo acontece com as viagens.
Vamos a um exemplo. Passamos ainda esta tarde com uma rapidez insensata, quase a correr, pelas salas do museu Machado de Castro, situado no velho palácio episcopal. Além de cansado fisicamente, eu não estou com disposição para uma visita desta natureza. Como resultado disto, lanço para os objetos expostos olhares cegos — quero dizer, fito-os mas não os vejo. Acho, entretanto, que tenho a obrigação de fingir, de mostrar que estou interessado em tudo. Por quê? Por gentileza? A quem? À pessoa da casa que nos acompanha, atenciosa, na visita? A verdade é que continuo a andar, voltando a cabeça dum lado para outro, parando aqui e ali. Às vezes cometo a ignomínia de examinar uma tela ou uma escultura com uma expressão de perito ou pelo menos de diletante. Oh! Como somos todos uns farsantes! O que eu devia ter feito quando convidado para conhecer o museu, era confessar a minha indisposição para esse tipo de visita hoje. Mas não! Cometi mais uma dessas pequenas covardias cotidianas e me deixei levar. Estou certo de que Mafalda aprecia melhor que eu o museu Machado de Castro, que possui (li mais tarde num folheto) preciosas obras de ourivesaria de valor histórico, além de objetos do uso pessoal da Rainha Santa. Em dado momento minha mulher me murmura algo sobre os cachos louros que haviam sido parte da cabeleira duma infanta. Ora, a palavra "infanta" faz funcionar meu obsoleto mas obstinado gramofone interior, e então passo a ouvir em 1927 um disco rachado, Pavane pour une infante defuncte, de Ravel. E a melodia acompanha-me com intermitências até ao fim da visita.


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Quem no Brasil já ouviu falar no Dr. Adolfo Correia da Rocha, médico português, especialista em otorrinolaringologia, que exerce sua profissão na cidade de Coimbra? Muito poucos, suponho. Pois esse é o nome verdadeiro do escritor Miguel Torga, na minha opinião um dos maiores prosadores de língua portuguesa em nossos dias. Até então eu o conhecia apenas de livro e lenda. Admirava-lhe a prosa enxuta, precisa e clara. Seus contos e romances, bem como seus poemas, estão cheios de mitos agrestes e duma simbologia bíblica. Arraigadamente regionais, nem por isso deixam de ter um sentido universal. Nota-se nos escritos de Torga um profundo amor à terra, aos bichos, às plantas, às coisas agrestes e um fascínio pelo mar — tudo isso a par dum impaciente horror às convenções sociais. Contam-se muitas estórias a respeito desse transmontano solitário. Dizem que é espinhento como um cacto, duro como a paisagem de sua província natal. Detesta os "aspectos festivos" da literatura. Se um leitor lhe pede um autógrafo, nega-o de maneira terminante. Não aceita convites para falar em público. Defende com unhas e dentes sua vida privada. É duma franqueza rude e desconcertante. Não quer saber de negócios com editores: ele mesmo edita seus livros e depois os entrega a uma livraria, que se encarrega de distribuí-los. Em suma, é o que se costuma chamar de "um homem difícil".
Naquela manhã pedi a Souza Pinto que me proporcionasse um encontro pessoal com Torga. Recomendei-lhe, porém, que não insistisse, caso notasse da parte dele pouco ou nenhum interesse em ver-me. Tudo, porém, se arranjou com facilidade. Ao entardecer me vi frente a frente com Miguel Torga, um homem mais ou menos da minha idade — magro, quase anguloso, e que me apertou a mão cordialmente. Gostei logo de sua cara e da maneira franca e direta com que me encarou sem dizer nenhuma dessas frases de pura cortesia que habitualmente um autor diz a outro ao ser-lhe apresentado.
Nosso repúdio aos regimes totalitários logo nos irmanou. Conversamos durante mais de meia hora sobre a deplorável situação social e política de Portugal. Depois eu disse ao autor de Novos Contos das Montanhas de meu encanto por Coimbra e de meu amor à primeira vista por sua Sé Velha. "A propósito" — sorriu Torga — "andou por aqui, há algum tempo, um colega seu, um romancista brasileiro." (Disse-me um nome, que julgo desnecessário revelar aqui.) "Levei-o pessoalmente a visitar a Sé Velha e seus tesouros de arte. O homem me pareceu desatento, desinteressado, creio que até soltou uns dois ou três bocejos enquanto eu lhe falava no retábulo de Olivier de Gand. Quando a visita terminou e saímos para o ar livre, seu compatriota lançou um olhar rápido e morno para a fachada da Sé e rosnou: 'Muito bonitinha'. Imagine, a nossa catedral bonitinha! Que falta de sensibilidade! Que animal!" Pensei em tentar a defesa de meu confrade, lembrando a Torga que muitos escritores não só brasileiros como portugueses eram completamente indiferentes à música e à pintura, e no entanto... Mas Torga me interrompeu e, com seu jeito agressivo, mas paradoxalmente afetuoso, interpelou-me: "Õ homem, sei que você tem andado por aí sempre cercado por uns filhos de famílias ricas e situacionistas. Vai levar uma impressão errada da mocidade de Coimbra. Seria bom se conversasse também com alguns estudantes pobres, desses que lutam para conseguir seu diploma, e que não são politicamente alienados". Respondo: "Pois esse encontro agora só depende de você, Dom Miguel. Proporcione-me a oportunidade..." — "Ah, mas o Érico Veríssimo deve andar cheio de convites para ceias, chás, reuniões, solenidades..." Replico: "Olhe, hoje não tenho nenhum compromisso para o jantar.. ," — "Mas sua conferência não está marcada para esta noite?" — "Sim, mas para as nove horas." Torga consulta o relógio. "Pois está bem" — diz — "vou reunir numa das nossas repúblicas alguns desses estudantes de que lhe falei. Jantaremos juntos. Não espere banquete. Às sete iremos a seu hotel buscar você e sua mulher. Combinado?" Respondo que sim, e nos separamos.
Umas três horas mais tarde Mafalda e eu estávamos sentados à mesa de jantar duma das repúblicas mais pobres de Coimbra, na companhia de sete ou oito estudantes, de Miguel Torga e de sua mulher, Andrée Cabré Rocha, belga de nascimento, professora universitária, especialista em Gil Vicente e autoridade reconhecida em teatro do Renascimento. Sereno é seu rosto, límpidos seus olhos, pouco o seu falar. Tenho a intuição de que deve ser uma admirável companheira para Torga.
A comida é simples. A companhia agradável. Os estudantes fazem-me perguntas. Como vai o Brasil? Que penso da construção de Brasília? Que rumo irá Fidel Castro dar à política interna de Cuba? Toleraria Tio Sam um regime socialista praticamente enredado em suas barbas?
Respondo que o Brasil vai bem, pois lá não existe censura. A construção de Brasília parece-me hoje uma extravagância, mas daqui a alguns anos eu serei possivelmente dos primeiros a reconhecer que no fim de contas a mudança da capital federal foi uma boa idéia. E acrescento: "E o mais notável é que essa obra de proporções faraônicas está sendo executada sem trabalho escravo, sem nenhum tipo de opressão". "Quanto a Cuba, temo que a inabilidade diplomática dos Estados Unidos acabe por atirar Fidel Castro nos braços da Rússia Soviética". Torga resmunga: "É o que vai acontecer. São umas bestas, esses seus amigos americanos".
É naturalmente de Portugal que falamos mais longamente. Digo que tenho achado seus homens de letras tristes, desalentados, e alguns deles até vazios de esperança, quanto a dias melhores. O povo? Parece-me dotado duma grande pureza de alma, mas demasiadamente submisso e resignado. Conto que há poucos dias dei um níquel à mulher que limpa o lavatório de nosso hotel. Ela ficou tão sensibilizada, que me quis beijar as mãos! E depois, quando eu já subia a escada, voltei-me e vi lá embaixo a pobre criatura sorrindo e acenando-me, agradecida. Durante nossa viagem de Lisboa até aqui passamos por várias turmas de trabalhadores — entre os quais vi muitos velhos — que à beira da estrada lidavam duramente com picaretas, pás, britadeiras. Interrompiam sua atividade quando nosso carro se aproximava, tiravam os chapéus e exclamavam respeitosamente: "Bons dias a Vossas Excelências!" — como se fosse um privilégio cumprimentar os cavalheiros engravatados que viajavam confortavelmente aboletados num carro de fabricação estrangeira. Pareciam aceitar sua condição social com demasiada resignação e fatalismo, como se considerassem as diferenças de classe um ato divino irreversível. Concluo: "Tudo isso me faz pensar que a revolução neste país jamais poderá vir de baixo".
— "Mas virá" — replica Miguel Torga — "virá um dia, não me importa de onde. Acho que você tem conhecido e observado os portugueses menos representativos do que este país tem de forte, bravo e obstinado. Não se deixe levar pelo que viu e ainda vai ver na capital federal. Preste atenção ao Porto, que é uma cidade de muito caráter, o baluarte da oposição. Lisboa não passa dum gracioso jardim, duma sala de visitas enfeitadinha".
Entra no refeitório um dos membros do comitê acadêmico, acerca-se de mim e comunica-me que o salão onde devo falar está já de tal maneira cheio — e mais gente continua a chegar
— que foi resolvido transferir o local da conferência para o teatro municipal. Olho para Torga e pergunto se tal coisa se pode fazer assim à última hora. O escritor sorri. — "Ó homem, Coimbra é ainda uma cidade pequena. A notícia correrá rápida de boca em boca. Para isso bastam uns quinze ou vinte minutos."


26

Levantamo-nos da mesa pouco antes das nove horas. Sinto no estômago o revoar de inquietas mariposas, bem como me acontecia na infância e adolescência em vésperas ou na hora dos exames escolares.
O teatro fica perto da república onde acabamos de jantar. Para lá seguimos a pé, na companhia de membros do Centro
Acadêmico. Começo a duvidar da idéia de Heráclito segundo a qual caráter é destino. Tudo indicava que meu temperamento retraído, minha timidez, meu desajeitamento diante das platéias — nas quais noto sempre a presença do meu eu autocrítico e sarcástico — e mais a consciência de que tenho uma voz fraca e opaca, me levassem a fugir de compromissos para fazer conferências públicas. No entanto aqui vou, sob as estrelas de Coimbra, já de gorja meio apertada e seca, rumo do teatro onde devo falar perante professores e estudantes duma das mais antigas e famosas universidades da Europa. Já fiz mais de mil conferências em vários países das três Américas. Em muitas dessas ocasiões senti-me como uma espécie de escroque internacional da cultura. Às vezes, no meio duma palestra pública, fosse onde fosse, eu experimentava um desejo suicida de perguntar em voz alta: "Vocês pensam que sei Matemática? Ou Geometria? Ou Química? Ou Física? Ou Filosofia? Ou História? Se pensam estão enganados. Modéstia à parte, sou um ignorante". Concluía que, se a UNESCO tivesse uma Interpol, na certa eu seria preso antes de pronunciar a primeira palavra da conferência. Pois é. Agora aqui vou caminhando sobre pedras outrora pisadas e repisadas pelos coturnos de Camões e Gil Vicente, pelos sapatos de Oliveira Martins, Antero de Quental, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e quantos, quantos mais!? Finjo que estou tranqüilo, digo piadas aos rapazes que me acompanham. Entramos no teatro. Sinto-me envolvido por uma onda de calor humano. Capas negras agitam-se. (Ticiano dizia que o preto é a mais bela das cores.) Rompem aplausos. Sigo escoltado, rumo do palco. Caras jovens e sorridentes por todos os lados. A casa está repleta não só de estudantes como também de homens em maioria — e mulheres das mais variadas idades. Nos camarotes de cinco lugares amontoam-se de oito a dez pessoas. Vislumbro um universitário praticamente escanchado numa coluna, como um morcego gigante num tronco de árvore. Vejo gente de pé pelos corredores, entre os grupos de poltronas. Minhas mariposas epigástricas assanham-se cada vez mais.
Subimos para o palco, ficamos por instantes no proscênio. Soam aplausos. Oh bela gente de boa vontade! Obrigado! Obrigado! Tenho ímpetos de atirar beijos para todos os lados, como faziam os acrobatas dos circos da minha infância. Sou o bravo burlantim do trapézio volante e — respeitável público! — vou fazer hoje o meu ato sem a proteção duma rede.
Os aplausos prolongam-se. De capas e batinas negras, os estudantes parece que vieram para uma missa de sétimo dia ou para um velório. Como se explica esta minha obsessão por velórios? Raro é o romance meu que não tem um, implícito ou explícito. Seja como for, este é um velório alegre. E o defunto está no palco, vivo, de pé, o coração batendo com força. Os aplausos vão serenando e por fim cessam. Verifico com surpresa que Miguel Torga está na platéia, sentado numa poltrona, na primeira fila. Não sei ao certo se isso me alenta ou perturba. Seja o que Deus quiser. Vejo que temos um microfone. Não me será necessário altear a voz para ser ouvido: uma preocupação a menos.
Um dos membros do comitê do Centro Acadêmico me saúda com palavras generosas. Um outro me coloca sobre os ombros a negra capa acadêmica. Um terceiro me entrega um presente: uma bandeja de prata em que vejo gravado o perfil da torre da Universidade, o meu nome, o da Academia de Coimbra e a data de hoje.
Finalmente chega a vez de o velho acrobata fazer o seu número. Seguro o trapézio. Onde está a musiquinha dos circos do passado?
Vou correr o risco de levar uma pedrada — penso — e começo a falar: "Senhoras, senhores, meus caros professores e estudantes! Quero que minhas primeiras palavras esta noite em Coimbra sejam de homenagem a um dos mais notáveis prosadores da língua portuguesa que me honra com sua presença neste teatro: Miguel Torga!!!" Faço com a mão um sinal na direção do cacto transmontano, temendo que o homem se erga, brusco e bravo, me grite um palavrão e se retire do recinto. Mas lá está Dom Miguel sorrindo e fazendo-me sinais de agradecimento, enquanto o público bate palmas com entusiasmo.
No silêncio de expectativa que depois se faz, sinto que as minhas mariposas adormeceram, o vagotônico está ausente, e uma calma lúcida se apodera de mim. Faço então a minha mais longa conferência de que tenho lembrança. Principio dizendo que certamente o público estranhará meu português de gaúcho, que lhes há de parecer um pesado carro de bois carregado de pedras, já que no sul do Brasil insistimos em usar e até abusar do som das vogais. A seguir faço todas as acrobacias que sei, inclusive a de saltar de um trapézio para outro com os olhos vendados. Após uns cinqüenta e cinco minutos de monólogo, convido o público para um colóquio. Já nesta hora estamos como num serão familiar. Estudantes e não estudantes, alguns sentados no soalho do palco a meu redor, me atiram perguntas de toda natureza, inclusive algumas perigosamente políticas. Respondo de acordo com minhas possibilidades, porém mais uma vez, diante duma questão complicada, saio pela providencial porta do humorismo. Quem pode dar em poucos minutos sua fórmula para salvar o mundo das guerras e das crises econômicas? Ou definir a natureza de Deus? Ou ainda expor sua "filosofia de vida"?
Ao cabo de mais quarenta minutos, tento em vão encerrar o diálogo, mas qual! os estudantes têm sempre mais uma pergunta. O trapezista está já de músculos doloridos, a goela seca e ardida. Com muita dificuldade consigo pingar o ponto final à conferência. (Sinto falta do vibrante galope da banda circense que costuma rematar os atos acrobáticos.)
Imagino que posso retirar-me do teatro facilmente, mas vários estudantes sobem para o palco com livros meus, que me pedem para autografar — o que é fácil — e com perguntas que não tiveram lembrança de fazer durante o colóquio — o que me faz sentir mais acentuadamente a canseira mental.
Do teatro seguimos para um café com um grupo de universitários e lá ficamos em improvisada tertúlia durante quase meia hora. Discutimos com os membros do comitê de recepção o programa do dia seguinte. É mais de meia-noite quando Mafalda e eu nos vemos sozinhos no quarto do hotel. Sinto o corpo amolentado, a cabeça como que oca. Apagamos a luz. Mafalda me diz do quanto gostou dos Torga. E depois: "Tens um fôlego de cavalo". (Qual o gaúcho que não se sente orgulhoso quando comparado com um cavalo ou um avião da VARIG?) — "Mas falei como um burro... não?" — pergunto, assim como quem quer ouvir um elogio. Minha mulher leva algum tempo para responder. "Não. A conferência estava boa. Acho que a reação dos estudantes foi muito favorável. Mas uma coisa te digo. Isto não é maneira de viajar. Quero dizer, esta corrida doida." Revolvo-me na cama, sentindo que não me vai ser fácil dormir. "E tudo indica" — digo — "que do Porto em diante o ritmo da nossa excursão vai ficar ainda mais acelerado. Em algumas vilas e cidades passaremos um dia e uma noite. Em outras, apenas algumas horas. E haverá sempre discursos, sessões de autógrafos..." Novo silêncio. "Não podes te queixar. Aprovaste o itinerário." Replico: "Quem te disse que estou me queixando?" — "Boa noite!" Em breve ouço o leve ressonar da companheira. Invejo-a cordialmente. De olhos fechados saio à caça do sono numa floresta sombria povoada de vultos, faces humanas, vozes, melodias. Pode bem acontecer que o sono me arme uma arapuca na qual de repente eu caia — caçador caçado. Dá tudo no mesmo. Vozes ainda me fazem perguntas da platéia do teatro. Um oboé toca uma longa frase bucólica de J. S. Bach, mas num outro tempo, num outro país. E, meio levitando, sigo por entre as árvores o sonoro cipó luminoso, floresta a dentro.
Com toda a certeza dormi aquela noite, mas de maneira tão superficial — uma fina fatia de sono — que ao despertar cedo, na manhã seguinte, tive a impressão de ter passado a noite em claro.


27

Nosso último dia em Coimbra. Visitamos várias repúblicas de estudantes. As mais antigas me parecem as mais pitorescas. Pouco conforto, escassos móveis, uma alegre desordem, e todos os odores das pensões de estudantes do Porto Alegre da minha adolescência. Pelas paredes, cartazes, páginas de revistas com mulheres seminuas ou nuas. Caricaturas de lentes da Universidade. Com a curiosidade dum arqueólogo que entra no túmulo recém-descoberto dum faraó, penetro nos lavatórios, examino de perto os grafitos nas paredes... Concluo que seria interessante fazer um estudo comparativo entre o humor estudantil português e o brasileiro. Como um Champollion de mictórios tento decifrar, mas em vão, alguns hieróglifos misteriosos. E numa atmosfera amoniacal sigo as inscrições e os desenhos murais — alguns duma clareza inequívoca.
Mais tarde deixamo-nos perder nas ruas e becos de Coimbra, na esperança, nunca frustrada, de encontrar alguma curiosidade ou relíquia arquitetônica — um templo (ah! precisaríamos de dois dias para ver bem, e conscientemente, a interessante igreja de Santa Cruz), um mosteiro, uma fonte com azulejos, um claustro... De repente temos a grata surpresa de encontrar nas ruínas do castelo de Sub Ripas a torre em que Antônio Nobre teve seu quarto de estudante pobre e solitário, durante os poucos anos em que freqüentou a universidade — a celebrada Torre de Anto. Dizem que o poeta costumava gravar seu nome nas molduras das janelas e nas vigas de madeira da vetusta torre.

Ó Virgens que passais ao Sol-poente
Pelas estradas ermas a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido lar.


28

No fim daquela límpida manhã em que a própria luz do sol parecia impregnada da fragrância das glicínias, das madressilvas e dos pinheiros — visitamos a igreja de Santo Antônio de Olivais, situada a uma das entradas de Coimbra, e tão cheia de evocações desse santo, dito de Pádua mas realmente nascido em Lisboa, e tão querido em todo Portugal. Estávamos os cinco caravaneiros acompanhados de dois dos estudantes que nos pajeavam atenciosamente desde nossa chegada a Coimbra. Passamos sob os arcos do velho pórtico, ao pé da escada que, ladeada por pequenas capelas que representam as Estações da Cruz, leva à porta do templo. Momentos mais tarde, ao voltar para fora tive diante dos olhos a perspectiva duma rua de vila provinciana de casas antigas que me lembraram as de Ouro Preto. Atravessamos um pequeno largo e subimos para uma das calçadas. Notei que havia pessoas — principalmente mulheres — debruçadas nas janelas de suas residências. Algumas delas nos fitavam sorrindo, com tal expressão de simpatia, que nós as cumprimentávamos em voz alta, efusivamente, como se fôssemos velhos conhecidos. E este burgófilo examinava com afetuosa atenção telhados, beirais, portas, janelas, sacadas, portões, coRNijas — quando de súbito ouviu uma voz: "O Sr. Érico V’rissimo em carne e osso passando pela frente de minha casa! Quem diria? Só pode ser um milagre do meu querido Santo Antônio!" Voltei a cabeça e vi, enquadrada pela moldura azul de uma janela, uma velha senhora, possivelmente a dois passos dos oitenta anos, agitando os finos braços na nossa direção, o busto muito inclinado sobre o peitoril. Será que ouvi direito? — pergunto a mim mesmo. — Ela repete alto e claro o meu nome. Vou a seu encontro e aperto nas minhas suas mãos alvas e frescas. É uma dama magra, os cabelos completamente brancos, os olhos acinzentados e líquidos, o rosto rugoso pintalgado de manchas purpúreas. Mafalda também lhe aperta a mão. Os outros companheiros seguem devagar seu caminho. "Oh meu rico senhor!" — torna a exclamar a desconhecida. — "Não imagina o bem que me fez a sua Olívia com as cartas! São sempre um consolo para mim. Eu as leio e releio. Quando há pouco me contaram que V. Ex.a e sua esposa estavam a visitar a igreja de nosso Santo Antônio, mal pude crer... Quer dar-me a honra de autografar o meu exemplar de Olhai os Lírios do Campo? Tenho-o aqui, pois estava de emboscada, à sua espera." Voltou-se para dentro da casa e apanhou uma brochura bastante manuseada, na qual tive a surpresa de reconhecer a capa da primeira edição brasileira de meu romance. Apanhei-a, perguntei à senhora como se chamava. (Imprevisível, caprichosa memória! Nega-se agora a devolver-me esse nome e no entanto me mostra com clareza as cores e o desenho do vestido estampado da doce velhinha!) Encostei o volume na parede da casa e escrevi a mais carinhosa dedicatória que me ocorreu no momento, enquanto minha inesperada leitora continuava a falar "Coitadinha de Olívia! Tão amorosa, tão dedicada e valente. Fez de tudo por Eugênio mas só muito tarde ele a compreendeu. Pobre rapaz! Era ambicioso mas fraco. Não sabia que o dinheiro nunca deu felicidade a ninguém. Ah! E a Anamaria? Deve estar agora uma moça, não? Casou-se? Encontrou um bom homem capaz de cuidar bem dela? E o caro Dr. Seixas? Está vivo ainda?"
Devolvi o' livro à sua dona, que leu a dedicatória e exclamou: "Quem sou eu para merecer tanto?" Eu não sabia que dizer. Beijar aquelas mãos? Apertei-as apenas, longamente, balbuciando agradecimentos. E seguimos em silêncio na direção dos companheiros, que nos esperavam parados à próxima esquina. A meio caminho voltei a cabeça e atirei um beijo para a anciã, que ainda nos acenava de sua janela. Narciso beijando a própria face refletida num regato do caminho? Não. Estou certo de que atirei aquele beijo para o passado, na direção de todas as velhinhas da minha infância que me quiseram bem, que me afagaram a cabeça, me deram bolos de milho e me contaram estórias maravilhosas.


29

Jantamos naquela noite na República dos Paxás — numa reunião alegre na qual tomaram parte não só estudantes "nacionais" como também convidados de outras repúblicas, como a do Pra-Ki-Stão, além de alguns professores jovens da Universidade. Lembro-me de que ao ser-me apresentado um lente de Pediatria, homem grande e simpático, me abraçou com tanto entusiasmo que chegou a erguer-me do chão. Recordo-me ainda hoje de seus traços fisionômicos, do timbre de sua voz, da cor de sua roupa e até do padrão de sua gravata, e no entanto minha memória obstina-se em negar-me seu nome. Paciência.
Mafalda, Jorge de Sena, Souza Pinto, Luís Fernando e eu fomos levados como chefes de Estado em visita oficial, por entre alas de guardas da "república", com toalhas enroladas nas cabeças, à feição de turbantes, bombachas improvisadas com lençóis ou colchas, faixas coloridas — todos sérios e perfilados, apresentando-nos armas, isto é, varapaus, espadas de madeira e velhas vassouras.
O ágape começou em meio de grande algazarra. Havia sobre a longa mesa travessas com comida variada — diversos tipos de carne e muitas verduras e legumes. Um peixe parecia olhar-me fixamente com seus olhos imóveis, como se quisesse dizer-me algum segredo. Uma cabeça de leitão me sorria, mostrando os dentes. Piadas partiam de todos os quadrantes da mesa. Momento houve em que se travou entre dois estudantes um duelo de trocadilhos — muitos dos quais não conseguimos entender por motivos prosódicos. A luta verbal terminou sob uma vaia geral e gritos de "Basta! Basta! Basta!" De vez em quando os rapazes erguiam seus copos e canecas de vinho e soltavam seus gritos de guerra. O Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! (Eu não ouvia aleguás desde os meus tempos de menino, de sorte que esses brados tinham para mim um sabor arcaico.) Ao cabo de cada brinde que nos dirigiam, eu não tinha outro remédio senão fingir que bebia com os outros.
Contaram-se piadas. Armaram-se discussões metafísicas e mesmo físicas, tudo numa atmosfera de camaradagem e bom-humor. Finalmente vieram, como sempre, discursos em profusão, pois em reuniões de brasileiros, portugueses ou espanhóis, discurso sempre puxa discurso. Por fim chegou minha vez de falar. Fiz o que pude, o que não foi muito. Estaria o peixe ainda a observar-me com seus olhos vidrados? Não estava. Dele só restava agora na travessa a alva carcaça. A cabeça do leitão havia sido devorada, mas sobrara o focinho, a maçã e o ricto.
Deixamos aquele alegre refeitório pouco antes da meia-noite. Alguém me disse ao ouvido que os rapazes nos reservavam uma surpresa, para que levássemos uma boa lembrança da nossa última noitada em Coimbra. Conduziram-nos para a calçada, à frente do prédio da república. Uma névoa espessa e úmida escondia a noite. Fazia um frio penetrante: a temperatura devia estar abaixo de 10 graus centígrados. Mafalda agarrava-se a meu braço, tiritando. Alguém exclamou: "Raio de nevoeiro! Não podemos ver a lua cheia". Tive a impressão de que a visibilidade não ia além de cinco ou seis metros.
Ouvimos um tremelicar de guitarras junto com um gemer de violões. De onde vinha a música? Difícil de dizer. Uma voz sentida começou a cantar um fado coimbrão. (Um entendido saberia explicar a diferença que existe entre o tradicional e popular fado português, tal como é conhecido no mundo, e o fado mais sofisticado de Coimbra.) As estórias que as letras contavam, falavam de amor, saudade, desencantos e "nunca mais". (As mães foram felizmente deixadas de lado.) E então começou para mim a fantasmagoria. Estávamos no fundo do mar. Peixes, algas, anêmonas, âncoras cantavam em meio dos vultos de caravelas naufragadas havia séculos. Lá no alto, na superfície do mar, um misterioso pescador procurava iluminar as profundezas das águas com um possante holofote.
Mafalda, Luís Fernando e eu estávamos calados. Não havia mesmo nada a dizer. Outras vozes chegaram a nossos ouvidos, outros fados. Onde estavam os mancebos de capas negras que tocavam guitarras e violões, cantando mágoas e amores? Talvez sentados em janelas, ou no parapeito de terraços, ou encostados em paredes ou postes em esquinas próximas. Eu os escutava olhando para o alto, na esperança de que se abrisse uma fresta no nevoeiro e pudéssemos ver a face da lua, madrinha das serenatas. E ali, arrepiados de frio e ao mesmo tempo de beleza, nos quedamos por mais de uma hora ouvindo as cantigas da mais triste e terna gente do mundo.
Cedo, na manhã seguinte, metemo-nos com armas e bagagens no B.M.W. e partimos para o norte, na direção do Porto.
Temendo chegar tarde para se despedirem de nós, muitos dos estudantes nossos amigos haviam passado a noite em sofás e poltronas, no saguão do hotel.


30

Nesta manhã sem vento, sob um céu desbotado, o sol parece lutar com a névoa pela posse completa da paisagem. Quando, cerca das dez horas, chegamos às barrancas do Douro, antes de entrar na ponte de Dom Luís, que nos deverá levar até à outra margem, Souza Pinto faz parar sua viatura ao lado da estrada, e convida-nos a descer para ir até um miradouro próximo, de onde poderemos ter uma vista panorâmica do Porto e arredores. E aqui estamos agora os cinco viajantes junto duma balaustrada de pedra, contemplando a capital da província do Douro Litoral.
Sinto que as cidades também têm sexo, como os seres humanos e os animais. O Rio de Janeiro tem encantos de mulher. São Paulo é homem. Lisboa é uma graciosa rapariga. Mas antes que eu forme qualquer juízo a seu respeito o Porto parece gritar: "Sou macho!", e atrai minha atenção para a mais alta das torres de suas igrejas, que lá está empinada em seu flanco, como um falo secular. Concluo que o Porto é realmente um varão de aspecto severo, um burgo com músculos e nervos de granito, solidamente plantado no seu rochedo, com seus bairros mais novos a estenderem-se principalmente na direção de Figueira da Foz e do porto marítimo (artificial) de Leixões. A cor da cidade? Um branco de osso, manchado aqui e ali pelo azulado de cúpulas, pela ardósia e o pardo avermelhado dos telhados, pelo verde grave dos parques e praças, e riscado pelas faixas cinzentas de suas ruas, algumas das quais, ao norte, na parte mais alta da falésia, semelham longos patamares estreitos. Debruando a base do rochedo onde o Porto tem seu centro, estende-se um cais de pedra com escadarias, arcadas, tendas, toldos, e sobre essa plataforma à beira-rio vejo um formigamento humano de bazar e feira, que tem algo de oriental: homens e mulheres a moverem-se dum lado para outro, sobraçando, equilibrando na cabeça ou levando nos ombros cestos, sacos, caixas, engradados — todos como que movidos por uma secular ancestralidade fenícia e cartaginesa. Edifícios em geral de quatro andares servem de pano de fundo para o cais, suas janelas, sacadas e portas voltadas para as águas, onde se movem embarcações de variados tipos, rio abaixo, rio acima ou duma margem para a outra.
Depois da Primeira Guerra Mundial o progresso das áreas urbanas em muitos países do nosso mundo passou a ser medido visualmente pela quantidade e pela altura de seus chamados "arranha-céus", de modo que, ao cabo duma década ou
duas, essas cidades começaram a ficar parecidas umas com as outras e todas elas com o modelo original norte-americano..Esse, entretanto, não me parece ter sido o caso de Portugal. E dentre as comunidades mais importantes deste país, creio que o Porto foi a que guardou maior fidelidade a uma fisionomia arquitetônica nacional e tradicional — essa que os portugueses legaram às terras por eles colonizadas no além-mar. Em nenhum outro lugar do Brasil que conheço, nota-se melhor esse traço de família que na cidade de Salvador, na Bahia.


31

Que me poderia dizer agora sobre sua cidade e sua gente um portuense bairrista que surgisse aqui a meu lado neste miradouro, conjurado por minha fantasia? "Meu caro senhor, eis a capital comercial e industrial de nossa pátria. Em Lisboa brinca-se. No Porto trabalha-se. O lisboeta é o mandrião, o pelintra, o funcionário público. O portuense tem sido através da História o mantenedor das tradições liberais de Portugal, o vanguardeiro de seus movimentos cívicos e progressistas. Em 1820 expulsamos as tropas inglesas para cá trazidas pelas guerras napoleônicas. Essa revolta vitoriosa permitiu a volta do Brasil de nosso rei D. João VI e sua Corte, bem como a instituição duma monarquia constitucional. Fomos nós que amparamos D. Pedro I, herdeiro legítimo do trono português, quando seu irmão D. Miguel pretendeu usurpar o trono e restabelecer o absolutismo."
Não vejo a face de meu interlocutor imaginário, mas sinto-lhe a sutil presença feita, por assim dizer, de antigas leituras minhas e principalmente das informações bem recentes de Jorge de Sena. Continua o espectro: "A semente da república estava já em nossa revolta de 1820. Sem o apoio das tropas do Porto essa república não conseguiria manter-se! Como V. Ex.a deve
saber, chamam-nos de 'tripeiros'. Ora, essa alcunha, longe de nos irritar, até nos honra, se levarmos em conta sua origem histórica e patriótica. No ano de 1415 uma grande frota com milhares de soldados encontrava-se às margens do Douro, preparando-se para a conquista de Ceuta. Era preciso dar de comer aos expedicionários. As autoridades do Porto ordenaram então a matança de todo o gado existente na região. A carne foi destinada aos guerreiros, sobrando para a população civil apenas a parte menos nobre da anatomia desses animais. Pois bem. Os portuenses, gente a quem não faltam engenho e arte, transformaram essas tripas num prato não só comestível como também saboroso, que se foi aperfeiçoando através dos tempos até constituir-se na iguaria que hoje aparece até em ementas de restaurantes internacionais como tripés à Ia mode du Porto". Meu estômago se contrai. O entusiástico portuense prossegue: "Sabe que o Porto é a mais antiga cidade de todo este país? Começou como uma povoação, Cale, fundada pelos gregos no ano 2 000 antes da Era Cristã". Recebo esta informação não apenas com um grão mas com um barril de sal. Segundo minhas leituras, Cale foi fundada pelos romanos lá pelo ano de 138 A.C. "Qual, meu amigo!" — protesta o tripeiro invisível. — "Foram os gregos, e a data está certa. Mas não vamos discutir números. Lá estava Cale à margem esquerda de nosso formoso rio. Do outro lado do estuário erguia-se, completamente nu, esse rochedo de granito em cuja base detritos sedimentários do Douro se foram aos poucos acumulando até formar uma praia que passou a servir de abrigo ocasional aos barcos que subiam ou desciam o Douro. Esse lugar, que não tinha nome oficial, mas que lentamente se foi povoando e subindo as encostas, era geralmente conhecido como 'o porto'. Quando alguém queria designar a região limitada ao norte pelo rio Minho e ao sul pelo Douro, costumava chamá-la de 'porto e cale'. Assim, quando em 1094 o rei D. Afonso VI, de Leão e Castela, cedeu esse território ao conde D. Henrique de Borgonha, marido de sua filha bastarda Teresa, já esta parte da Península Ibérica era conhecida como o Condado Portucalense. Não é preciso ser filólogo para perceber que de Portucale a Portugal é só um passo, e bastante curto e óbvio. Como vê, nasceu nesta região o nome que hoje ostenta a pátria portuguesa."
O espectro faz uma pausa durante a qual ambos olhamos para as águas. "E que me diz deste rio? Sem querer desmerecer o Reno, o Loire, o Danúbio, nem vosso formidável Amazonas, pergunto-lhe se haverá no mundo inteiro rio mais belo que o Dourol De que cor acha V. Ex.a que estão hoje suas águas? Verde-garrafa? Verde-jade? Verde-musgo? Sua cor depende da luz de cada dia ou mesmo de cada hora ou minuto. Amanhã poderão estar cor de chumbo, mas não se surpreenda se um dia, fotografando esse mesmo estuário, ele lhe apareça na fotografia revelada dum puro azul ultramarino... O Douro é um rio mágico. Nasceu na Espanha, não por escolha própria mas porque Deus assim determinou. Rompe Portugal a dentro com toda a fúria, o ímpeto e a paixão da alma castelhana, rugindo sobre um leito eriçado de rochedos e que se estreita em incontáveis gargantas, espumeja em corredeiras vertiginosas, tomba em inesperadas cascatas, mas que de certo trecho em diante, já influenciado decerto pela doçura da paisagem portucalense, se vai alargando e serenando, e suas águas refletem as encostas das margens recobertas de vinhas, de onde vem o suco da uva com que se fabrica o famoso vinho que tem levado o nome de nossa cidade a todos os recantos da Terra. É talvez por tudo isso que, antes de desaguar no oceano, em paz com Deus, os homens e o mundo, o Douro transforma-se neste tranqüilo estuário que abraça amorosamente sua cidade...
"Não vou cometer a tolice de perguntar-lhe se já provou do vinho do Porto. Mas talvez não lhe conheça a origem, a história... Há uns oito séculos o conde D. Henrique mandou plantar cepas trazidas de sua Borgonha natal num vale do Alto Douro, de solo tão árido e clima de tal modo tórrido, que nele nenhuma planta lograva vicejar. Ora, essas videiras francesas necessitavam, antes de mais nada, de terra vulcânica e sol, muito sol, elementos de que o vale não carecia. Cercado de outeiros e montes que de certo modo o protegiam contra os gélidos ventos vindos da serra do Marão, o vale era uma espécie de estufa natural. Ah, meu amigo, mas que lutas e sofrimentos tiveram os plantadores de enfrentar naquela atmosfera infernal, arrancando pedras do chão, quebrando lajes a golpe de maceta, antes de encontrar o escuro solo onde fincar as cepas borgonhesas! E depois havia ainda o problema das pragas, entre as quais a filoxera. Mas a verdade é que com o passar do tempo lá estava o vale todo recoberto de vinhas, que foram subindo as encostas e depois por elas descendo pelo outro lado até à beira do rio. Uma epopéia, meu caro senhor! Isso, porém, foi apenas o princípio. O vinho não tinha sido ainda produzido. Hoje em dia as uvas amadurecem ao sol e quem primeiro denuncia esse amadurecimento são as abelhas que as picam. Assim os vinhateiros sabem que é tempo de colher. Isso acontece lá por setembro. O perfume das uvas maduras inunda então os ares do vale e dos montes com sua doce fragrância. Cachopas cortam-lhes os cachos e com eles enchem cestos que os homens carregam às costas até à margem do rio, onde eles são depositados em enormes dornas e, depois de pisadas as uvas (e esse é um alegre tempo de festa, de cantigas e danças!) o mosto é trazido em barris rio abaixo, para este estuário, nessas embarcações munidas duma vela quadrada chamada rabelos, e cujo perfil lembra um pouco o dum barco fenício... E agora, meu amigo, tenha a bondade de voltar a cabeça para a esquerda. Está vendo a comunidade situada nesta margem esquerda? Pois bem. É a Vila Nova de Caia, onde se prepara o vinho com o sumo que vem das videiras do Alto Douro. Em seus numerosos laboratórios, vestidos de branco, em meio de provetas, pipetas, retortas, os provadores de vinho fazem sua química ou, melhor dito, sua alquimia. Cada tipo de Porto tem o seu segredo. Há o problema do gosto, do aroma, do 'corpo'. Cada um desses provadores deve saber exatamente quando deve usar mais ou menos álcool, para apressar ou retardar a fermentação do mosto.
Outra função sutil desses magos é a de saber como misturar o suco de uvas de safras novas com o de safras antigas. Porto doce? Porto semi-seco. Porto seco? E quanto à cor? Âmbar? Amarelo de topázio? Pardo-escuro com reflexos de rubi? Não sei por que, meu amigo, mas por motivos aparentemente absurdos costumo associar o trabalho desses fazedores de vinho do Porto com a delicada tarefa dos grandes cortadores de diamante de Amsterdam. Bom. Feita a alquimia, o vinho é posto em cubas de carvalho da Rússia e posto a dormir e amadurecer em galerias que se estendem por quilômetros e quilômetros, cavadas no subsolo de Vila Nova de Gaia. Pois acredite que produzir esse néctar delicioso é uma das maneiras que nós os 'tripeiros' temos de fazer poesia, compreende?" Compreendo. Penso em juntar-me aos companheiros mas o portuense me segura o braço com suas mãos inexistentes mas poderosas. "E não esqueça: o Porto não se entrega facilmente, como Lisboa. Os portuenses não cultivam o salamaleque, não costumam dançar minuetos. A princípio a cidade pode até mostrar-lhes uma face meio hostil. Quantos dias vão permanecer entre nós? Dois? Ridículo, se me permite a palavra, ridículo! Aposto como deu e dará semanas a Lisboa. É sempre assim. V. Ex.a, sua mulher e seu filho precisam penetrar nos secretos encantos desta metrópole, mas para isso é necessário tempo e boa vontade. Bom, meu amigo, não o importunarei mais com as minhas loas ao Porto. Entrego-lhe simbolicamente a chave da cidade. E como bom tripeiro torno a preveni-lo de que não se deixe levar pelas primeiras impressões. E agora, adeus!"


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Hospedamo-nos num desses hotéis antigos que deve ter vivido sua grandeza e seu prestígio durante o último período da 6e//e Époque, mas que com o passar dos anos foi perdendo estrelas nos guias turísticos, embora tivesse conseguido manter sua confortável respeitabilidade. Enquanto nos registramos ao balcão, julgo ler toda a história desta casa nos seus móveis, tapetes, cortinas e principalmente no "fantasma" da atmosfera do passado que insiste em assombrar palidamente este saguão.
Subimos aos nossos aposentos, de dimensões para nós inesperadas. O quarto de dormir, com sua cama de quatro postes, de tão espaçoso daria uma razoável sala de estar. Pesadas cortinas de veludo clarete guarnecem as duas janelas que dão para a rua. Um tapete persa, poído, mas fazendo ainda a sua figura, estende-se ao pé do leito. O boy entra com nossa bagagem. Dou-lhe uma gorjeta, ele agradece discretamente, sem o menor gesto ou palavra de servilismo. Bravo! Depois que ele se retira, vamos examinar o resto do apartamento e verificamos com surpresa que a peça contígua, exatamente do tamanho da primeira, é metade quarto de vestir e metade "casa de banho", como costuma dizer-se por aqui. O singular é que entre essas metades não existe nenhuma divisão de alvenaria, madeira ou mesmo papelão, e sim apenas uma cortina corrediça de pano. E como está situada numa plataforma, a "casa de banho" nos lembra um palco. Minha mulher e eu nos entreolhamos, intrigados, e depois desandamos a rir. "Essa eu nunca tinha visto!" — exclama ela. A um canto da primeira metade da peça, vemos um daqueles móveis que minha mãe e suas contemporâneas costumavam chamar de psichê (alguns diziam pixixê). Junto a uma das paredes avulta um majestoso guarda-roupa num vago estilo Regência. No mais, cadeiras, tapetes, quadros famosos em reproduções miniaturais, um vaso com flores azuis... O que me está interessando mesmo é o "quarto de banho" — palco cujo cenário poderia ser descrito assim: À direita, uma pia de louça branca encimada por um espelho digno do boudoir da Dama das Camélias. À esquerda uma caixa alta e estreita de granito escuro, contendo os chuveiros com suas torneiras de metal cromado. Ao fundo, no centro, um vaso sanitário com a respectiva caixa dágua. "Imagina o seguinte" — digo. "Um dia tu desces para o café da manhã e me deixas aqui sozinho. Mais tarde a camareira bate na porta, uma, duas, três vezes e como não ouve nenhuma resposta, entra para arrumar o quarto. Dirige-se primeiro a este compartimento anfíbio, faz correr bruscamente o pano de boca do 'palco' e dá com este hóspede grotescamente sentado no vaso sanitário, na postura do Pensador de Rodin. A criatura solta um grito. 'Ai Jesus! Perdoe-me, meu rico senhor... Eu não sabia!' Vermelha e atarantada, precipita-se para o corredor... e eu aqui fico, preso à minha condição humana. Sabes? Estou pensando até em escrever uma peça especialmente para este patético cenário. Uma coisa assim à Ia Beckett... Escuta. Terminou a Terceira Guerra Mundial. A bomba de hidrogênio foi usada e a humanidade inteira pereceu. Tudo indica que sou, modéstia à parte, o único sobrevivente da hecatombe. Sentado no sanitário deste hotel do Porto (ou Paris, se preferes) penso em se devo ou não sair pela cidade e pelo mundo em busca duma mulher que por acaso tenha sobrevivido, para recomeçar com ela uma nova humanidade. O problema é se vale a pena ou não continuar a Comédia Humana. Qual é tua opinião?" Mafalda me fita em silêncio e finalmente diz séria: "Por que não aproveitas já a camareira que entrou inesperadamente?" — "Pronto! Estragaste a peça!" Estou curioso por experimentar os chuveiros. Faço correr a cortina, cerrando o palco. Dispo-me. Entro na caixa de granito. Torço suas muitas torneiras, procurando temperar a água. Verifico que do alto sai um jorro que se encontra a meio caminho com o que sobe do chão, como dum chafariz, meto-me entre ambos e depois mexo na torneira da direita, que me manda uma ducha horizontal contra o peito e na da esquerda, que me atira um esguicho contra o lombo. Descubro então que estou numa crucifixão aquática. Magnífico hotel!


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Como nosso primeiro compromisso no dia de hoje está marcado para a tardinha, decidimos os cinco excursionistas almoçar juntos no Escondidinho, considerado o melhor restaurante do Porto. O ambiente é muito agradável. Dão-nos uma boa mesa, a um canto. Uma bacalhoada à Gomes de Sá é unanimemente escolhida como prato principal. "Aperitivos?" — indaga o garçom. Cada qual escolhe o seu. Peço um cálice de vinho do Porto doce. Doce? Percebo, na face do homem que anota os pedidos, uma leve expressão de estranheza tocada de desprezo. É sabido que o porto indicado como aperitivo é o seco. O semi-seco e o doce devem acompanhar o queijo, à sobremesa.
Quando meninos, meu irmão Enio e eu íamos visitar Porto Alegre — para nós mambiras serranos uma metrópole tentacular — e levávamos, entre outras superstições e tabus, um temor respeitoso pelos garçons dos cafés mais importantes da cidade, em geral uns espanhóis gordos, com lustrosas calvas e cerradas barbas que lhes azulavam as faces, mesmo quando escanhoadas de fresco. Diante do aspecto façanhudo desses símbolos da "cidade grande", sentíamo-nos mais caipiras e acanhados que nunca. Assim, antes de entrar num café ou confeitaria, primeiro espiávamos da porta a cara dos garçons e consultávamo-nos com o olhar: devíamos ou não enfrentar os monstros sagrados? Ora esse temor acompanhou-nos durante muitos anos. De minha parte confesso que não estou certo de me haver livrado dele por completo. Não ouso agora encarar este português — por coincidência gordo, calvo e de barba forte — por causa da gafe que acabo de cometer.
Trazem-nos os aperitivos, que começamos a bebericar. "Que lhe parece a cidade?" — pergunta-me Souza Pinto. Respondo que não senti ainda nenhum desejo de incorporá-la à
minha burgoteca. E acrescento: "Devo esclarecer que ela não fez ainda nenhum gesto de coquetismo, de oferecimento, quero dizer, não me exibiu até agora nenhuma rua, praça, beco, edifício ou ambiente, enfim, com a intenção de conquistar-me". Minha mulher elogia a cor do vinho que ilumina meu cálice. (Ela permanece fiel ao seu martini seco, vício adquirido nos Estados Unidos.) Olho em torno e observo que quase todas as mesas desta sala do restaurante estão ocupadas por uma clientela, em sua maioria do sexo masculino, em que é considerável a incidência do tipo louro, de olhos claros e faces cuja tonalidade vai dum rosa com manchas de cereja até a essa cor de pó de tijolo. Os homens trajam roupas feitas de excelentes tweeds. Devem ser ingleses, claro! O Porto conta com uma considerável colônia britânica. Desde 1678 — lembra-me Jorge de Sena — revelaram-se os ingleses grande apreciadores dos vinhos de Portugal. Era o tempo da Grande Aliança, quando a Grã-Bretanha, aliada à Áustria e à Holanda, disputava com a França, que era apoiada pela Espanha, a hegemonia européia. Era pois necessário à Pérfida Albion (será que se usa ainda esta expressão?) conquistar os favores do outro país que formava a Península Ibérica. Assim atraiu Portugal mediante um acordo político, cuja isca era de natureza econômica. Esse tratado, que foi assinado em 1703, compunha-se de duas cláusulas básicas. Por um lado Portugal comprometia-se a deixar entrar "para sempre" em seu território todos os panos de lã e quaisquer outros lanifícios provindos da Grã-Bretanha; por outro a Inglaterra reduziria a taxa de importação sobre os vinhos portugueses que entrassem em seus portos a apenas um terço do que por lei estavam sujeitos os vinhos franceses e alemães.
Assinado o acordo, Portugal foi tomado duma espécie de euforia vinhateira e produziu tanto vinho, que acabou por aviltar-lhe o preço. O fato de sua incipiente indústria de fiação e tecelagem não poder suportar a tremenda concorrência da Inglaterra, acentuou desastrosamente para os portugueses o desequilíbrio da balança comercial entre os dois países. O que salvou Portugal da bancarrota foi o ouro que lhe vinha do Brasil. Assim, podemos concluir sem fantasia nem exagero que o ouro brasileiro muito contribuiu para o financiamento da Revolução Industrial inglesa...
Por causa desse acordo entre os fabricantes de tecidos ingleses e os produtores de vinho portugueses, muitos foram os cidadãos britânicos que vieram viver e trabalhar no Porto, visto como a preferência dos "bifes" inclinava-se principalmente para o port. Com o passar do tempo a colônia britânica desta capital do Douro se foi fazendo cada vez mais numerosa e influente. Famílias inglesas houve que aqui permaneceram durante muitas gerações e que pelo matrimônio entrelaçaram-se com famílias portuguesas. É sabido que para onde quer que vá no mundo, o cidadão britânico costuma carregar consigo a Inglaterra, na forma dum clube "exclusivo", da maneira de vestir, morar, comer e de hábitos como o de beber chá segundo um ritual. (Toda esta nossa conversa se processa em voz baixa, enquanto tomamos o nosso caldo-verde.) Souza Pinto sorrindo informa que no Porto os ingleses trocaram o hábito do chá pelo do vinho do Porto em torno do qual já se estabeleceu um rito.
Neste momento, para nossa alegria, chega o garçom com a bacalhoada. Enche-nos os cálices com vinho Dão. (Foi em Santa Comba Dão que nasceu o Prof. Oliveira Salazar.) Neste exato momento algum oposicionista português pode estar sendo torturado por agentes da P.I.D.E. para confessar o que não sabe. A História oficial de Portugal dirá que foi graças ao gênio mercantil de comerciantes ingleses que o néctar que se fabrica em Vila Nova de Caia e tem o nome da cidade do Porto se tornou conhecido e apreciado em todos os quadrantes da Terra. Mas quem quiser olhar de outro ângulo a saga do vinho do Porto deve ler o romance Port Wine, de Alves Redol.
O gentleman rubicundo que almoça solitário a uma mesa, a pouca distância da nossa, acende metodicamente seu cachimbo. Se lhe dissermos que neste momento em que nos regalamos com uma bacalhoada fartíssima, milhões de criaturas passam fome em quase todos os países do orbe, ele possivelmente nos repetirá o ditado inglês, segundo o qual It takes all kinds... a saber, é preciso um pouco de tudo para fazer um mundo.


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Quando saímos do restaurante sugiro um passeio lento e descompromissado pela parte baixa da cidade, ao longo dum trecho de seu cais. Deixamos o nosso B.M.W. estacionado numa pequena praça e, tendo Souza Pinto como guia, descemos as inclinadas ruas que nos levarão até à beira do Douro. Sei que depois que estabelecermos contato com os nossos anfitriões portuenses — a Associação de Jornalistas e Homens de Letras Portugueses — teremos de cumprir um programa que talvez não nos deixe um minuto livre para caminhadas vadias como esta.
Nota-se uma atividade de colméia nas vias por onde passamos. Sem a menor dúvida: os portuenses trabalham a sério, caminham depressa, num ritmo de quem tem um propósito certo, uma tarefa imediata a realizar, um encontro com hora marcada. (Time is money? Dizem que a influência britânica no Porto é bastante acentuada. Não creio, porém, que ela tenha tocado a classe média e o proletariado. Talvez haja ficado restrita principalmente à alta burguesia, entre a qual deve ser de bom-tom parecer inglês.) Vejo nesta gente da rua a mesma solidez que noto nos edifícios, cujas fachadas têm um tom fosco, sugerindo densas faces humanas que resistem à influência do azul do céu e do claro sol deste princípio de tarde. Parece que os seres humanos, bem como as pedras e as plantas, recusam assumir um ar de feriado. A cidade inteira parece dizer: "Meu caro senhor, hoje é um dia útil. Não é domingo nem dia santificado. Temos deveres a cumprir".
Olhando melhor a fisionomia destes edifícios inclino-me a modificar a primeira impressão que tive do Porto quando a avistei do outro lado do rio — a saber, que seu estilo arquitetônico dominante "tradicionalmente lusitano" foi o que os portugueses deixaram em terras por eles colonizadas no além-mar. É que estou descobrindo com demasiada freqüência um certo quê de oriental nestas construções — algo que eu não saberia descrever ou situar. Talvez seja ainda tempo de fazer uma errata... mas para quê? Será sempre a opinião dum leigo. Além disso acredito muito em "primeiras impressões". Mesmo quando erradas elas parecem conter em seu âmago pelo menos um grão, embora microscópico, de verdade. Por outro lado a vida me tem ensinado que há verdades que sentimos embora não as possamos provar. Procurando explicar-nos por que não se vêem muitas residências senhoriais no centro do Porto, conta-nos Jorge de Sena que durante longo tempo, em virtude dum edito real, a nenhum fidalgo, a nenhum grão-senhor era permitido construir suas vivendas solarengas dentro dos muros da cidade, lugar reservado exclusivamente aos comerciantes e aos artesãos. Observo que esse fato, interpretado pelo saudável bairrismo dos portuenses, poderia até levá-los a afirmar que a Revolução Francesa na realidade começou no Porto, muito antes que em Paris.
Cá vamos descendo sempre na direção da Ribeira. Sinto a cidade com a visão, o olfato, o tato, a audição. Não posso, entretanto, dizer que a esteja comendo. À medida que nos vamos aproximando do cais, as ruas se fazem mais estreitas, surge o tema do labirinto, aparecem ruelas e becos de calçadas diminutas ou sem calçada nenhuma, pavimentados de pedra irregular. Por todos os lados vejo gente que vai e vem, entra e sai de portas, aparece às janelas... Um cheiro de água, temperado levemente pelo de maresia e de madeira apodrecida, chega-nos às narinas. Às vezes estaco a fim de ver passar uma dessas mulheres robustas, algumas com buços fortes a coroar-lhes os lábios carnudos, de claro desenho, seios abundantes, artelhos troncudos, pescoços fortes. Muitas delas equilibram na cabeça caixas, cestos, trouxas. Ali vai uma carregando um pequeno armário, que sinto pesado, as mãos na cintura, o andar ritmado. Como trabalham as mulheres do povo em Portugal! Crianças, cães e gatos começam a surgir de inesperadas portas, arcadas, vãos e vielas. E à medida que nos aproximamos do rio, cada vez mais encardidas e malcheirosas são as ruas. Vejo casas de dois ou três andares, com roupas a secar nos peitoris das janelas ou em cordas estendidas dum lado a outro dos becos: lembram-me os filmes e as fotografias dos vicoli de Nápoles.
Numa pracinha miniatural em que não falta uma bica de onde a água jorra, somos assaltados por um bando de dez ou doze meninos e meninas de seis a oito anos, descalços todos, as roupinhas sujas e remendadas, as caras encardidas e pálidas. São alunos duma escola primária das cercanias. Quando me vêem de câmara fotográfica nas mãos rompem a pular e gritar: "Tira retrato! Tira retrato!" Cercam-me num círculo, dão-se as mãos, e põem-se a cirandar, repetindo: "Retrato! Retrato!" Peço-lhes que formem duas filas, que fiquem quietinhos, e fotografo-os em cores... Isto aconteceu no dia 24 de março de 1959. Não é possível — penso agora ao escrever esta página — que algum daqueles meninos, ao chegar à idade militar, tenha sido chamado à tropa e mandado à África para matar angolanos e moçambicanos ou ser morto por eles "na defesa da integridade da pátria portuguesa", como apregoava a Secretaria de Informação do país? Não resisto à tentação de projetar numa parede branca, neste gabinete onde agora escrevo, o diapositivo que mandei fazer daquela fotografia. Revejo os rostos redondos, sujos de carvão mas risonhos. E minha fantasia — que trabalha por conta própria — escolhe o soldado morto. É aquele garoto de calças remendadas, com uma expressão de quase espanto nos olhos. Sim, foi ele que tombou assassinado por um guerrilheiro de Angola ou Moçambique. It takes ali kinds.


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Às cinco da tarde somos muito cordialmente recebidos na sede do Centro de Estudos Luso-Brasileiro pela sua diretoria. Em seus salões estão reunidos — calcula meu editor — umas trezentas pessoas, entre jornalistas, historiadores e homens de letras. Somos abraçados, sacudidos, puxados dum lado para outro por esta simpática gente que tanto se interessa pelo Brasil. Um pensamento me ocorre. Os estrangeiros, principalmente os anglo-saxões, parecem achar muito estranho que duas criaturas humanas que nunca se viram na vida, possam abraçar-se com tanta efusão e tão prolongadamente ao serem apresentadas, ficando em muitos casos a bater ruidosamente nas costas uma da outra, como velhos amigos de infância que se reencontram após longa separação. Ora, esse é um belo hábito latino ou, mais precisamente, luso-brasileiro. O proverbial comedimento britânico, o medo de revelar emoções, explica-se, parece-me, no caso do relacionamento entre homens, pela repulsa ao contato físico. No fundo desse sentimento deve estar o inconfessado e muitas vezes insabido horror ou fascinação pelo homossexualismo. Sorry!
Poucas das pessoas que me são apresentadas nesta recepção cumprimentam-me de maneira formal. Raras são as que me conhecem pessoalmente. No entanto, na maioria dos casos ficamos a tocar tambor um no lombo do outro e a trocar perguntas e pontos de referência. Conhece Fulano no Rio? Já foi apresentado ao Sicrano? Em 1936 escrevi-lhe uma carta... recebeu? Sou primo do X, lembra-se dele? Claro, homem! Aperte estes ossos! Venha tomar alguma coisa.
A todas essas minha retentiva vai registrando faces, feições, mas quanto aos nomes das pessoas que me são apresentadas não consigo ouvi-los claramente ou ouço-os e esqueço-os no minuto seguinte.
Como não podia deixar de acontecer, fazem-se vários discursos, a que respondo com meu habitual desajeitamento. Não sei ainda como esta gente recebe minha falta de brilho verbal, de bravura oratória.
Terminada a recepção voltamos a pé ao hotel, para ter a oportunidade de ver algumas ruas do centro do Porto. Visitamos rapidamente antiquários. Mafalda lança olhares compridos para uma grande braseira de latão, de aspecto medieval. Mas como transportar essa almanjarra para o Brasil? Onde encontrar lugar para ela em nossa pequena residência? Examinamos imagens de santos, estátuas ditas antigas, ícones, candeeiros, castiçais, candelabros, crucifixos... Em duas livrarias folheamos livros, Souza Pinto nos apresenta a um livreiro e a um editor. Não deixamos de entrar em casas de prateiros e ourives. Porto é a cidade do ouro e da prata. Ruas inteiras aqui existem onde praticamente só se encontram casas que vendem jóias e objetos de ourivesaria e prataria.
De novo no hotel, no nosso apartamento, torno a pensar na "minha peça" sobre o fim do mundo ou uma nova chance para a humanidade — e não resisto à tentação de ser mais uma vez crucificado em água.
Mais tarde, devidamente purificado, estendo-me na cama com a intenção de descansar um pouco, preparando-me para o "jantar regional" que a Associação dos Jornalistas e Homens de Letras nos vai oferecer esta noite.
Durmo uma sesta clandestina, da qual acordo com um tolo sentimento de culpa, pouco antes das oito, quando a noite já caía por completo. Visto-me às pressas. Mafalda há muito está pronta. Membros da diretoria daquele grêmio, que de certo modo é o patrocinador desta nossa visita ao Porto, aparecem à hora marcada para nos buscar. Fora, faz frio. Envolto num tênue nevoeiro, o Porto brinca de ser Londres.
Reencontramos Jorge de Sena e os Souza Pinto na sede da Associação. Quase cento e oitenta pessoas (o cálculo é de meu editor, que tem bom olho para essas coisas) acham-se sentadas a uma mesa toda enfeitada de flores em que predominam os tons de amarelo e laranja. O presidente da Associação, que está sentado a meu lado — homem culto, agradável companhia, há pouco me ciciou ao ouvido: "Contraria-o saber que haverá possivelmente entre estes convivas dois ou três informantes da P.I.D.E.?" Respondo-lhe que, ao contrário, isso será para mim um tempero exótico para o jantar. Examino a ementa. Caldo verde com tora e broa de Avintes. Depois, um prato de sardinha assada ou, se o convidado preferir, bacalhau na brasa. Terceiro prato: Tripas à moda do Porto; alternativa: arroz de frango. Sobremesa: doces regionais, frutas diversas, café. Quanto a vinho, temos os verdes de consumo, o do Porto, conhaques e espumantes. É pena que exista uma tamanha falta de entente cordial entre meus apetites e curiosidades gastronômicas e minhas possibilidades digestivas. Ao café começam os discursos. Tenho notado que os portuenses falam de maneira mais lenta e articulada que os lisboetas. Um amigo em Lisboa me disse certa vez que estava p'rt'r-bado (sem pronunciar as duas primeiras vogais da palavra perturbado).
Chega a minha vez de discursar, agradecendo em nome de minha mulher e no meu a homenagem que nos acaba de ser prestada. Ataco com lerdo e sonolento ímpeto os governos totalitários, a censura, a tortura e digo de minha esperança de, na nossa próxima visita ao Porto, encontrar Portugal liberto de seus opressores.
Voltamos para o hotel cerca de meia-noite. Enfio o pijama, subo para o "palco", escovo os dentes diante da pia do espelho e concluo que vale a pena dar uma nova chance à raça humana. O homem é um ser pitoresco demais para ser completamente extinto. E pensando isto, atiro-me na cama com um suspiro de alívio.


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Cedo, na manhã seguinte, saímos no B.M.W. pela margem direita do Douro, rio acima, seguindo a antiga "estrada do vinho do Porto", e deixando a cidade para trás. Fomos tão longe quanto nos permitiu o tempo de que dispúnhamos. Vimos as encostas onde estão plantadas as vinhas em patamares sustentados por muros de ardósia. Imagino que muitos destes montes, alguns de forma cônica, vistos do alto poderiam parecer-se um pouco com as ruínas dos templos maias e astecas, por causa desses patamares e de sua forma piramidal. O tom que predominava nos vinhedos, naquela época do ano, era um pardo avermelhado de ferrugem que lembrava a cor da própria passa de uva. Rebelos singravam as águas abaixo e acima. Eram alguns deles tão longos e de costados tão baixos, que de perfil semelhavam rústicas gôndolas venezianas, só que cada uma munida dum mastro e uma vela, e carregada de barris. Num certo momento do passeio, tudo me pareceu perfeito quando avistei entre aquelas embarcações uma vela vermelha em meio das brancas, ao sol brumoso da manhã. Foi um passeio para nós inesquecível, através duma paisagem idílica, à beira dum belo rio de curvas... — eu ia escrever caprichosas por pura força de hábito, pois não é este o adjetivo que costuma acompanhar, como pajem fiel, o substantivo curva? Mas por que hão de ser todas as curvas necessariamente caprichosas? Deixemos, pois, as do Douro desta vez sem adjetivo. Ao cabo de mais de quatro decênios de exercício da literatura vou descobrindo, mais lenta e relutantemente do que devia, a inanidade de certas descrições, a inutilidade de fazer retratos humanos verbais, pintar paisagens com palavras — jogos pueris que podem divertir quem os pratica mas que não têm quase nenhum valor objetivo para o leitor. Reconheço, no entanto, que reincido a cada passo nesse vezo ou vício, e que o gênero literário que mais se presta para tais brinquedos verbais é mesmo a narrativa de viagem.
Voltamos ao meio-dia para o Porto. Mafalda e Luís Fernando têm livre o seu meio-dia. Quanto a mim, compareço com Jorge de Sena e Souza Pinto ao almoço que me oferecem editores e livreiros do Porto, e no qual tenho a oportunidade de conhecer pessoalmente vários cavalheiros cujos nomes estão direta ou indiretamente ligados a firmas que desde menino eu estava acostumado a ler na capa de livros editados em Portugal, como Lello, Garnier, Bertrand, Parceria A. M. Pereira, etc. É uma reunião cordial, tranqüila, com brindes e discursos absolutamente apolíticos. Na volta para o hotel, do carro em movimento, tenho uns vislumbres das ruas do centro do Porto.
Como é bom, quando a gente está em viagem, cumprindo um programa apertado, poder voltar ao hotel, tirar a roupa, meter-se num pijama e cair na cama! É o que faço agora quando me vejo no quarto. Meu nirvana, entretanto, não dura nem meia hora, porque o telefone tilinta e o recepcionista me comunica que "estão aqui embaixo algumas senhoras e senhores duma associação literária que gostariam de ver V. Ex.a". Bum! Outra implosão de vários megatons. Solto um profundo suspiro de autocomiseração. Torno a vestir-me — ah! a gravata! a gravata! a gravata! — e lá me vou enfrentar os representantes dum ateneu, cenáculo de intelectuais, academia de letras, associação literária ou coisa parecida. Haverá algo mais aborrecido que a literatura institucionalizada?
O grupo que me espera é mais numeroso do que eu imaginava. Seu porta-voz vai logo ao assunto que os traz à minha presença, além do propósito de me fazer uma visita de cortesia. Deseja o grêmio que eu lhe faça uma conferência em sua sede em dia e hora à minha escolha. Sinto que estou com a cara de meu Tio Tancredo quando, rapazote, vinha dizer a seu pai que uma rês se havia extraviado da tropa, e o velho, sacudindo a cabeça, murmurava: "Que lorpa!" Finalmente, após mais de meia hora consigo convencer a "comissão" de que não tenho um minuto disponível para o colóquio que me pedem. E eles se vão em paz, ou pelo menos assim me parece.
Volto ao quarto. Às quatro sou crucificado em água. Morro às quatro e quinze, mas às cinco ressuscito para comparecer a uma sessão de autógrafos na excelente livraria de Tavares Alves, competente editor e livreiro, homem baixo, delgado, amável, ágil de corpo e espírito. Sentado a uma mesa ponho-me a assinar livros. Leitores vejo sobraçando cinco, seis e até sete romances de minha autoria, nas bonitas edições da Editora Livros do Brasil, de Souza Pinto. Outros compram obras minhas ali mesmo no balcão — vejo com o canto dos olhos — e, quando ouço a registradora tilintar, não posso evitar uma certa cabula perante mim mesmo, pois tenho a embaraçosa impressão de que estou mercadejando numa feira meus próprios "produtos". De quando em quando alguém — homem ou mulher — me pergunta se consinto em aparecer com ele ou ela numa fotografia. Claro! O leitor aproxima-se, eu me ergo, o fotógrafo faz pontaria, o flash relampeja e por alguns segundos fico com manchas verdoengas e lívidas a dançar no meu campo de visão... Torno a sentar-me. O espetáculo continua. Venham! Venham todos! Aproveitem a oportunidade, talvez a única de vossas vidas! Quer fotografar-se comigo? Magnífico! Se permito que me segure o braço? Por que não? O fotógrafo quer um sorriso? Ofereço-lhe o melhor que um descendente de D. Maurícia Leite de Moraes Lopes pode obter numa emergência como esta... Clique! O clarão. As manchas. Maravilhosa gente! Se soubésseis como eu admiro vossa devoção, vossa paciência de esperar nessa longa fila pela minha assinatura! Ah, mas acima de tudo como me fazem bem vossas perguntas, vosso humano interesse por minhas criaturas de ficção! Não, senhorita, não pretendo escrever mais estórias sobre Vasco Bruno. Perdi-o de vista por completo. Ana Terra é um arquétipo, tem razão. Olívia nunca existiu na vida real. Se gosto de Portugal? Eu amo Portugal e os portugueses. Que Deus lhes dê um dia melhor governo!


37

Oito e meia da noite. Ao deixar o hotel rumo do auditório da Associação de Jornalistas e Homens de Letras, onde devo fazer uma conferência seguida de colóquio, digo a minha mulher: "Este touro (ou vaca, se preferes) entrará na arena já meio cansado das corridas do dia. O público que vou enfrentar daqui a pouco é dos mais quentes de Portugal".
O salão, bastante amplo, está atopetado de gente. Souza Pinto calcula que aqui se encontram cerca de mil pessoas. Isso me parece exagero, produto do entusiasmo de meu amigo e editor. Mas vá! A algazarra é enorme. Sou apresentado ao inquieto auditório por um membro da diretoria da Associação. Enquanto ele fala, já meio em tom de comício político, passeio o olhar pela platéia numa tomada panorâmica — como se diz em linguagem de cinema. Observo as faces: homens, mulheres, velhos, pessoas de meia-idade, jovens, adolescentes... E essas caras parecem contar-me numa fração de segundo estórias de atividades políticas clandestinas, julgo sentir em cada um desses peitos um anseio de liberdade e em cada garganta um brado de protesto prestes a escapar. Muitas das criaturas que se encontram neste recinto devem ter os dedos manchados de tinta de imprimir de tipografias clandestinas, os corpos marcados por cicatrizes de torturas sofridas nas prisões da P.I.D.E.
Quando o apresentador se cala e me lança na arena, rompem aplausos e gritos, o público quase inteiro se ergue e eu tenho a impressão que neste momento vai começar a grande marcha contra todas as cidadelas ditatoriais do país. Soam gritos de guerra. (Haverá no mundo sujeito com menos cara e fibra de condutor de homens que eu?) Caminho lentamente para o proscênio, pois detesto falar sentado. Alguém ajusta o microfone de acordo com a altura de minha cabeça. Depois de muitos vivas e morras, faz-se finalmente silêncio. De acordo com o programa, o título desta palestra é Confidencias dum Romancista. Concluo que não devo começar com amenidades. É inútil, sem propósito, tentar a sedação dum público do calibre deste, duma multidão de tal modo politizada e afeita à luta. Entro logo numa declaração de princípios políticos e sociais que são a negação mesma do que o salazarismo representa em teoria e prática. E convido logo o auditório ao colóquio. As perguntas saltam bruscas, meio entreveradas umas com as outras, lançadas de todos os cantos do salão. Um dos membros da diretoria da Associação intervém para organizá-las em ordem de prioridade. Como de costume, quando começo a falar "ouço" minha voz fosca e ao mesmo tempo aflautada, em suma, detestável. Em breve, porém, esqueço-a para concentrar-me nos interlocutores e em suas perguntas. Aos poucos vou sentindo, forte, cálido, firme, o pulso da oposição portuense. Que pensa V. Ex.a disto? (Por favor, não me chamem de V. Ex.a, mas de você! — peço.) Vou respondendo às perguntas e ilustrando-as com fatos da vida real. Que devemos fazer diante deste ou daquele problema? Respondo com a maior franqueza. Lutar, lutar, lutar sempre, sem esmorecer. Este país pertence a seu povo e não a dezoito ou vinte famílias abastadas. Todas as tiranias caem, mais tarde ou mais cedo. Ninguém é dono de ninguém.
À medida que o tempo e as perguntas passam, mais claras e diretas se vão fazendo as referências ao regime político português. Alguém da platéia pergunta qual é o escritor mais popular do Brasil, e quando pronuncio o nome de Jorge Amado, a platéia rompe em aplausos e vivas frenéticos. (Em 1959 os livros do autor de Terras do Sem Fim estavam proibidos de circular em Portugal.) Daqui por diante o colóquio vira positivamente comício político de rua. O nome do Gen. Humberto Delgado é discutido e aplaudido, bem como o do Embaixador do Brasil que presentemente enfrenta a ira do governo português por ter dado asilo político ao homem que, nas últimas eleições, ousou apresentar-se candidato à Presidência da República, contrariando a vontade da ditadura.
Ao fim do colóquio, que deve ter durado quase duas horas, um homem de meia-idade ergue-se na platéia e me diz as seguintes palavras: "Estávamos nós os portugueses como presos numa casa abafada, de atmosfera viciada e sombria. E eis que V. Ex.a chega, abre-nos uma fresta de janela pela qual entra o ar fresco, a luz do sol da liberdade, e então nós avistamos uma nesga de céu azul... e a esperança! Muito obrigado! Muito obrigado!" Confesso que, a despeito do evidente exagero dessas palavras, elas me fazem tão feliz que sinto jamais poderei esquecê-las.
Aqui mesmo nesta plataforma de onde acabo de falar, autografo vários livros meus e, como de costume, respondo a perguntas que não foram feitas durante o colóquio. Levo cerca de meia hora para me locomover de onde estou até à porta da rua.
Chego ao hotel cerca de meia-noite, exausto. As duchas mornas me aplacam um pouco a canseira, mas me deixam o corpo ainda mais amolentado. "Que noite!" — exclama Mafalda ao deitar-se. — "Confesso que houve um momento em que pensei que a polícia ia entrar no salão e acabar com a festa a cacetadas."
Não me lembro dos sonhos daquela noite. E no dia seguinte o B.M.W. esperava-nos à porta do hotel. Retomamos nossa "formação de combate" e deixamos a cidade do Porto, rumo do norte.


38

Os minhotos são gente alegre que ama dançar e cantar, e que tem um gosto acentuado pelos trajos coloridos. É cantando que suas belas mulheres e seus homens — que são também de boa raça — costumam trabalhar. Considerável é o número de grupos folclóricos existentes nesta província, e alguns deles já obtiveram primeiros prêmios em festivais internacionais de danças e canções regionais.
Portugal é um país de tal maneira belo e amorável, que o visitante desprevenido pode ficar com a ilusão de que nele todo mundo é feliz e vive bem. A verdade é que quando a gente despe as roupas e a mentalidade de turista, dando menos atenção ao "jardim da Europa à beira-mar plantado", à bondade de sua gente e aos seus velhos monumentos históricos — e começa a olhar a nação com olhos realistas, acaba alarmado ante a miséria predominante em todo o território nacional português e suas enormes desigualdades sociais. A mortalidade infantil entre as classes desprotegidas é muito grande. O índice de analfabetismo, alto. A falta de assistência médica é de tal maneira aguda, que não seria exagero afirmar que só existem no país (e mal distribuídos) doutores na proporção de um para cada nove ou dez mil pacientes. O trabalhador do campo recebe um salário vil. Costuma-se afirmar que nas províncias ao norte do Tejo predomina o regime do minifúndio e nas que ficam ao sul do grande rio, o do latifúndio. Isso quer dizer que a situação do chamado Norte não é melhor e sim apenas "menos má" que a do Alentejo e a do Algarve. As grandes vivendas senhoriais, dotadas do maior conforto, mesa farta, pomares, parques e jardins atraem de tal modo a atenção do viajante, que este inadvertidamente (ou por puro hábito burguês) tende a fazer vista grossa ao camponês que mora mal, mulher e filhos amontoados numa choupana com bichos domésticos, nas piores condições higiênicas imagináveis. Poderá um leitor realista replicar que um brasileiro como eu não tinha nenhuma autoridade para criticar a situação sócio-econômica de Portugal, pois a do Brasil não era melhor. Replicarei que estou falando num país tal como o conheci em 1959, quando estava sob um regime ditatorial fascista que durava trinta e um anos. Se em mais de três decênios de poder absoluto, esses males não puderam ainda ser abolidos ou pelo menos atenuados, então que teriam os partidários do salazarismo a dizer em seu favor?
Examinando um mapa, descubro nomes de lugares que me fascinam pelo que têm de cotidiano, ingênuo ou telúrico: Melgaço, Vila Verde, Amares, Cabeceiras de Basto, Espozende, Paredes de Coura, Kermesses Alegres... E que sugestivo é o nome da comunidade onde fazemos nossa primeira parada: Vila Nova do Famalicão! Aqui nasceu Camilo Castelo Branco, alguns de cujos romances são responsáveis pelas caudais de lágrimas vertidas por milhares e milhares de olhos no mundo de língua portuguesa. Fazemos rápida visita a São Miguel de Seide, onde por muitos anos viveu mestre Camilo, numa casinha branca e.simples por entre árvores, e que hoje é um museu camiliano. Enterneceu-me ver a mesa de trabalho, o tinteiro, a pena do escritor, seu boné de alpaca preta, seus óculos, sua cadeira de balanço, sua cama, seus livros... Pensei em sua vida atormentada e concluí que ele, Camilo, era uma trágica personagem de sua própria invenção.
Haverá coisa mais agradável aos olhos e ao espírito dum viajante que rodar em baixa velocidade dentro dum automóvel confortável numa estrada orlada de pinheiros, carvalhos, salgueiros e mulheres bonitas? Nestes nossos primeiros quilômetros andados em terras do Minho já pedi uma vez a Souza Pinto que parasse o carro a fim de que eu pudesse fotografar em cores uma camponesa. Desci do automóvel e perguntei à cachopa mostrando-lhe a câmara: "Permite-me?" Ela assentiu, sorrindo, com um sinal de cabeça. Era loura, de rosto oval, olhos escuros, e tinha um porte de princesa.
Prosseguimos a viagem, sempre para o norte, rumo de Braga, onde não tínhamos nenhum compromisso com estudantes, grupos literários ou livreiros. Dedicamos um par de horas à velha Bracara Augusta, fundada pelos romanos e na antiguidade ponto de irradiação de cinco importantes estradas militares. Ocupada pelos suevos, arrasada pelos árabes, apagou-se durante quatro séculos de decadência, ao cabo dos quais ressurgiu, tornando-se um dos centros religiosos mais importantes de Portugal. Nesta nossa pressa quase cômica mal relanceamos os olhos por suas igrejas, capelas, conventos, santuários, claustros. Não podíamos esquecer que estávamos sendo esperados com um almoço especialíssimo na vetusta Guimarães, considerada o berço da nacionalidade portuguesa. Em todas as viagens devemos contar sempre com essa fadiga, essa espécie de enfara-mento que vai tomando conta da gente e acaba impedindo-nos de ver realmente os espécimes humanos e arquitetônicos que se nos apresentam pelo caminho. (Ocorre-me agora que o homem compreenderia a vida e o mundo menos ainda do que os compreende se não tivesse a necessidade de dormir, ficasse sempre de olhos acesos, focados nas pessoas, animais e coisas a seu redor. Uma noite bem dormida nos pode devolver o mundo tal como se nunca o tivéssemos visto antes, evitando o tédio. Frase profunda ou idiota, esta? Não sei. Provavelmente idiota.) Mas vamos adiante. O leitor naturalmente lembra-se de que estamos em Braga, não? E de que nossas avós ou bisavós e tetravós costumavam dizer: "Velho como a Sé de Braga". É natural que visitemos esse monumento religioso que um antigo anexim popularizou. Aqui está a Sé, com o seu ábside cheio de pináculos, as arcadas de seu pórtico, a patina secular em suas